OS
SINOS DA AGONIA
Começou
a ouvir um sino muito longe, em longas pancadas sombrias e espaçadas. As
pancadas já no fim, há muito estavam tocando, só agora reparou. Não podia saber
o que anunciavam, apenas pressentia, pela tristeza redonda das badaladas. Você
que entende de sino, que é que estão tocando, Isidoro?
O
preto custava cada vez mais a responder, achando que só os olhos bastavam. A
fala ia perdendo para ele qualquer serventia, só o silêncio contava. Não
escutou antes? disse. Não, é a primeira vez, disse Januário custoso. O preto
parece que vai rir, os olhos já riam. Não escutou mesmo antes? Ou escutou e não
contou? É capaz de eu ter escutado antes, respondeu Januário. Não se lembrava.
Não é a primeira vez, disse o preto a contragosto, não querendo ainda
responder. É capaz de ir assim o dia inteiro.
Passado
ainda algum tempo, disse o preto agora vem a última. Preste bem atenção. Não
sabe o que é, não contou. Eu contei, mesmo sem querer eu conto. São as sete
pancadas compridas, muito espaçadas, como de costume. Mesmo eu falando, não
sabe o que é? Parece brinquedo, meu branco, mas eles estão tocando é mesmo a
agonia.
(E
Tirésias sorria vitorioso detrás de sua cegueira.)
A
minha agonia, pensou Januário numa estremeção. Um calafrio correu toda a
espinha, desde a nuca. Não, não era dele a agonia. De algum outro. Um outro
também carecia de render a alma cansada, não conseguia.
Alguém
está morrendo, disse Isidoro. As badaladas pedem ajutório de reza. Não custa
nada rezar, é o que branco ensina pra gente. Eu mesmo rezava, agora não rezo
mais não. Pra que o infeliz não sofra demais a agonia, os dedos da cadela.
Não
sofrer demais, mergulhar no silêncio sem fim de Deus. Todas as coisas que vêm do fundo, antes delas vem o silêncio. Feito a cegueira dos adivinhos. O
silêncio é a fala de Deus. A gente fica querendo ouvir a foz de Deus, não
escuta o silêncio. Antes de dizer faça-se a luz, houve o sopro de Deus, o
silêncio consagrando a terra. Ainda hoje, a gente querendo, na véspera da
agonia, se ouve o sopro silencioso de Deus. E o espírito de Deus se movia sobre
as águas. Era outra vez a voz sem timbre do leitor no seminário. E o espírito
de Deus era o silêncio, reconheceu Januário na mais profunda e sentida
humildade. E começou a ver, uma repentina paz o invadia, uma luz tão forte, por
dentro e fora dele. Uma pz que era como a aragem mansa e perfumada.
Levantou-se
e olhou Isidoro já de pé. Você vem, perguntou mais por perguntar. Como poderia
perguntar quantas horas eram, ele que já tinha ouvido as nove soarem. Agora era
indiferente, sabia que na hora mesmo estaria sozinho. Perguntou como uma
despedida, em vez de dizer adeus.
Vou
não, disse o preto. Daqui pra frente vou sozinho. Me afundo num sertão desses,
sertão é o que não falta. Sei lá pra onde vou. Vai se encontrar com a morte de
vez, mundo de branco acabou pra mim. Me desato pra sempre.
E
Januário sentiu uma estranha alegria, todo o cansaço desapareceu. Na cara a
aragem fresca do vento lambendo as folhagens, soprando as flores. Respirava
fundo, e todo o seu peito era uma campo de luz e de flores, esvoaçado pelo
silêncio colorido das borboletas. Tudo macio, ele podia morrer. E uma ternura
imensa, uma luz de alegria, começavam a jorrar dentro dele; um canto de nave,
epifania de Deus. Tinha vontade de beijar a mão de Isidoro e, sem saber por
quê, pedir perdão.
Você
vai pra algum quilombo? Vai virar quilombola?
No
timbre da sua voz, nas suas perguntas, toda a mansa e luminosa ternura que ele
não era capaz de dizer. Quem sabe o Quilombo Grande, ia dizendo num conselho
que valia por um carinho. Porque não era capaz de dizer o que queria mesmo
dizer.
O
preto guardou um longo silêncio. Os silêncios eram cada vez mais longos e
pesados, só através deles Isidoro queria falar. Os olhos relumeavam enormes.
Tem
Quilombo Grande nenhum mais não, disse Isidoro. Quem diz que ainda tem está
mais é sonhando com alma do outro mundo, conversando com a banda de lá, na
escuridão. Pai Ambrósio morreu faz um tempão de anos. Tempo de tudo é de todo
mundo, não tem meu nem teu, se acabou, volta mais não.
Mas
tem gente que ainda fala nele, disse Januário sem acreditar muito. Não queria
deixar o preto sozinho no vazio silencioso da solidão. Dizem que Ambrósio não
morreu, continuou querendo ver outro lume nos olhos sofridos do preto. Dizem
que um dia ele volta com uma tropa de centuriões, muito mais de mil, que ele
vive alforriando e arrebanhando no peito
por esse mundão perdido de Deus.
Qual,
disse Isidoro num riso repuxado. Basta fazer as contas nos dedos. Ninguém vive
tanto assim. Tem Ambrósio mais não!
Dizem
que Ambrósio não envelhece, a morte de Ambrósio foi mentira, invenção de
branco, disse Januário repetindo o que tinha ouvido contar na senzala do pai.
Só
se for um outro Ambrósio, aquele morreu, disse Isidoro começando a querer
acreditar. Não, tudo isso é história, fumaça, invenção! A gente carece disso, é
melhor isso sofrendo do que nada sem dor. A gente carece de fumaça, de ar, de
azulidão. Pra poder agüentar a dor de viver. É feito esse rei dom Sebastião,
que tem muito branco esperando até hoje. Se acha que ainda tem quilombo...
disse querendo acreditar, já acreditando.
Tem,
você mesmo sabe que tem, disse Januário.
O
preto ruminava o seu groso silêncio. Um boi pastava longe, contra o azul
ensolarado do céu.
Sempre
tem uns gatos pingados de fujões encafuados por esses matos, disse Isidoro.
Isso nunca deixou de ter. É, é capaz de ter razão. Eu ou catar um quilombo
qualquer por aí, ainda deve de ter. Até que a disgramada da morte venha buscar
venha buscar o que é dela de nascença.
É
o melhor que você faz, disse Januário. Você tem uma raça que te espera, uma
noite pra te abrigar. Eu não tenho raça nenhuma, sou que nem mula, manchado de
geração. Me chamam às vezes de bugre, você sabe. Nem isso eu sou. Sou mais um
puri esbranquiçado por obra de meu pai. nem branco nem índio. Eu sou nada. Eu
vou é ao encontro dessa nada que eu sou.
O
silêncio do preto era agora enorme demais, maior do que a noite da véspera, da
noite que o esperava. Uma ou outra palavra avarenta, palavras miúdas e
sofridas, arrancadas das entranhas do silêncio, era só o que Januário
conseguia. Pelo que vejo, você não quer mais falar comigo, disse Januário
sufocado.
O
preto custava ainda mais a responder, como se tivesse mesmo de arrancar da
carne as palavras. Nada disse não, falou. Que é então, perguntou Januário.
Nada, repetiu o preto olhando o céu. Nada não, gritou Januário, e o seu grito
ecoou longe. Isidoro encarou-o demoradamente, mais fundo do que nunca, nos
olhos. O olhar do preto lhe varava a alma. Só com os olhos queria falar.
E
Januário viu que uma coisa terrível, um silêncio ensurdecedor, crescia detrás
dos olhos do preto. Fala, disse Januário pedindo, apesar do medo na alma, do
que o outro podia dizer.
Eu
falo agora pela última vez, foi dizendo Isidoro pausado e duro, feito ditando
uma carta. (E Januário viu: de há muito ele não era mais seu escravo, os dois
eram agora iguais.) Daqui pra frente me calo de vez em língua de branco. Só vou
falar ioruba, língua da minha cor. Branco nenhum vai mais me entender. Podem me
matar de pancada, bacalhau no lombo, pés e braços no tronco, que não falo mais
língua de branco, de reinol ou paulista nenhum! Se não tem mais quilombo, eu
arrebanho uns da minha iguala, faço um. Um quilombo tão grande que nem o do
Ambrósio, do tamanho da minha nação. Só preto igual a mim é que vai me
entender! Só morto é que vão me pegar. Morro de trabuco na mão!
E
como Januário tentasse ainda uma nova pergunta, o preto começou, entre uivos e
gemidos, uma algaravia selvagem de sons guturais. Adeus, mesmo assim, disse
Januário sabendo que o outro não ia mais responder.
E
foi descendo o morro, quase escorregando. Quando se voltou, viu o preto parado
e mudo. A carabina segura pelas duas mãos, na frente do corpo. Todo a sua
figura se recortava em pedra negra, contra o azul claro do céu. A cabeça
levantada, o peito aberto, os olhos no além, parecia mais um guardião do
templo, o porteiro e guia mudo da sua nação. Andou mais um pouco e tornou a se
voltar. Andou mais um pouco e tornou a se voltar. Isidoro tinha sumido de vez
na luz. Agora ele ia sozinho, quase corria. Não se voltou mais para trás .
Alcançou a rua, passou pela igreja das Mercês.
Autran
Dourado
Os
Sinos da Agonia
Difel.
São Paulo.
4ª edição. 1981.