segunda-feira, 8 de outubro de 2012

HOMENAGEM



OS SINOS DA AGONIA

Começou a ouvir um sino muito longe, em longas pancadas sombrias e espaçadas. As pancadas já no fim, há muito estavam tocando, só agora reparou. Não podia saber o que anunciavam, apenas pressentia, pela tristeza redonda das badaladas. Você que entende de sino, que é que estão tocando, Isidoro?

O preto custava cada vez mais a responder, achando que só os olhos bastavam. A fala ia perdendo para ele qualquer serventia, só o silêncio contava. Não escutou antes? disse. Não, é a primeira vez, disse Januário custoso. O preto parece que vai rir, os olhos já riam. Não escutou mesmo antes? Ou escutou e não contou? É capaz de eu ter escutado antes, respondeu Januário. Não se lembrava. Não é a primeira vez, disse o preto a contragosto, não querendo ainda responder. É capaz de ir assim o dia inteiro.

Passado ainda algum tempo, disse o preto agora vem a última. Preste bem atenção. Não sabe o que é, não contou. Eu contei, mesmo sem querer eu conto. São as sete pancadas compridas, muito espaçadas, como de costume. Mesmo eu falando, não sabe o que é? Parece brinquedo, meu branco, mas eles estão tocando é mesmo a agonia.

(E Tirésias sorria vitorioso detrás de sua cegueira.)

A minha agonia, pensou Januário numa estremeção. Um calafrio correu toda a espinha, desde a nuca. Não, não era dele a agonia. De algum outro. Um outro também carecia de render a alma cansada, não conseguia.

Alguém está morrendo, disse Isidoro. As badaladas pedem ajutório de reza. Não custa nada rezar, é o que branco ensina pra gente. Eu mesmo rezava, agora não rezo mais não. Pra que o infeliz não sofra demais a agonia, os dedos da cadela.

Não sofrer demais, mergulhar no silêncio sem fim de Deus. Todas as coisas que vêm do fundo, antes delas vem o silêncio. Feito a cegueira dos adivinhos. O silêncio é a fala de Deus. A gente fica querendo ouvir a foz de Deus, não escuta o silêncio. Antes de dizer faça-se a luz, houve o sopro de Deus, o silêncio consagrando a terra. Ainda hoje, a gente querendo, na véspera da agonia, se ouve o sopro silencioso de Deus. E o espírito de Deus se movia sobre as águas. Era outra vez a voz sem timbre do leitor no seminário. E o espírito de Deus era o silêncio, reconheceu Januário na mais profunda e sentida humildade. E começou a ver, uma repentina paz o invadia, uma luz tão forte, por dentro e fora dele. Uma pz que era como a aragem mansa e perfumada.

Levantou-se e olhou Isidoro já de pé. Você vem, perguntou mais por perguntar. Como poderia perguntar quantas horas eram, ele que já tinha ouvido as nove soarem. Agora era indiferente, sabia que na hora mesmo estaria sozinho. Perguntou como uma despedida, em vez de dizer adeus.

Vou não, disse o preto. Daqui pra frente vou sozinho. Me afundo num sertão desses, sertão é o que não falta. Sei lá pra onde vou. Vai se encontrar com a morte de vez, mundo de branco acabou pra mim. Me desato pra sempre.

E Januário sentiu uma estranha alegria, todo o cansaço desapareceu. Na cara a aragem fresca do vento lambendo as folhagens, soprando as flores. Respirava fundo, e todo o seu peito era uma campo de luz e de flores, esvoaçado pelo silêncio colorido das borboletas. Tudo macio, ele podia morrer. E uma ternura imensa, uma luz de alegria, começavam a jorrar dentro dele; um canto de nave, epifania de Deus. Tinha vontade de beijar a mão de Isidoro e, sem saber por quê, pedir perdão.

Você vai pra algum quilombo? Vai virar quilombola?

No timbre da sua voz, nas suas perguntas, toda a mansa e luminosa ternura que ele não era capaz de dizer. Quem sabe o Quilombo Grande, ia dizendo num conselho que valia por um carinho. Porque não era capaz de dizer o que queria mesmo dizer.

O preto guardou um longo silêncio. Os silêncios eram cada vez mais longos e pesados, só através deles Isidoro queria falar. Os olhos relumeavam enormes.

Tem Quilombo Grande nenhum mais não, disse Isidoro. Quem diz que ainda tem está mais é sonhando com alma do outro mundo, conversando com a banda de lá, na escuridão. Pai Ambrósio morreu faz um tempão de anos. Tempo de tudo é de todo mundo, não tem meu nem teu, se acabou, volta mais não.

Mas tem gente que ainda fala nele, disse Januário sem acreditar muito. Não queria deixar o preto sozinho no vazio silencioso da solidão. Dizem que Ambrósio não morreu, continuou querendo ver outro lume nos olhos sofridos do preto. Dizem que um dia ele volta com uma tropa de centuriões, muito mais de mil, que ele vive alforriando  e arrebanhando no peito por esse mundão perdido de Deus.

Qual, disse Isidoro num riso repuxado. Basta fazer as contas nos dedos. Ninguém vive tanto assim. Tem Ambrósio mais não!

Dizem que Ambrósio não envelhece, a morte de Ambrósio foi mentira, invenção de branco, disse Januário repetindo o que tinha ouvido contar na senzala do pai.

Só se for um outro Ambrósio, aquele morreu, disse Isidoro começando a querer acreditar. Não, tudo isso é história, fumaça, invenção! A gente carece disso, é melhor isso sofrendo do que nada sem dor. A gente carece de fumaça, de ar, de azulidão. Pra poder agüentar a dor de viver. É feito esse rei dom Sebastião, que tem muito branco esperando até hoje. Se acha que ainda tem quilombo... disse querendo acreditar, já acreditando.

Tem, você mesmo sabe que tem, disse Januário.

O preto ruminava o seu groso silêncio. Um boi pastava longe, contra o azul ensolarado do céu.

Sempre tem uns gatos pingados de fujões encafuados por esses matos, disse Isidoro. Isso nunca deixou de ter. É, é capaz de ter razão. Eu ou catar um quilombo qualquer por aí, ainda deve de ter. Até que a disgramada da morte venha buscar venha buscar o que é dela de nascença.

É o melhor que você faz, disse Januário. Você tem uma raça que te espera, uma noite pra te abrigar. Eu não tenho raça nenhuma, sou que nem mula, manchado de geração. Me chamam às vezes de bugre, você sabe. Nem isso eu sou. Sou mais um puri esbranquiçado por obra de meu pai. nem branco nem índio. Eu sou nada. Eu vou é ao encontro dessa nada que eu sou.

O silêncio do preto era agora enorme demais, maior do que a noite da véspera, da noite que o esperava. Uma ou outra palavra avarenta, palavras miúdas e sofridas, arrancadas das entranhas do silêncio, era só o que Januário conseguia. Pelo que vejo, você não quer mais falar comigo, disse Januário sufocado.

O preto custava ainda mais a responder, como se tivesse mesmo de arrancar da carne as palavras. Nada disse não, falou. Que é então, perguntou Januário. Nada, repetiu o preto olhando o céu. Nada não, gritou Januário, e o seu grito ecoou longe. Isidoro encarou-o demoradamente, mais fundo do que nunca, nos olhos. O olhar do preto lhe varava a alma. Só com os olhos queria falar.

E Januário viu que uma coisa terrível, um silêncio ensurdecedor, crescia detrás dos olhos do preto. Fala, disse Januário pedindo, apesar do medo na alma, do que o outro podia dizer.

Eu falo agora pela última vez, foi dizendo Isidoro pausado e duro, feito ditando uma carta. (E Januário viu: de há muito ele não era mais seu escravo, os dois eram agora iguais.) Daqui pra frente me calo de vez em língua de branco. Só vou falar ioruba, língua da minha cor. Branco nenhum vai mais me entender. Podem me matar de pancada, bacalhau no lombo, pés e braços no tronco, que não falo mais língua de branco, de reinol ou paulista nenhum! Se não tem mais quilombo, eu arrebanho uns da minha iguala, faço um. Um quilombo tão grande que nem o do Ambrósio, do tamanho da minha nação. Só preto igual a mim é que vai me entender! Só morto é que vão me pegar. Morro de trabuco na mão!

E como Januário tentasse ainda uma nova pergunta, o preto começou, entre uivos e gemidos, uma algaravia selvagem de sons guturais. Adeus, mesmo assim, disse Januário sabendo que o outro não ia mais responder.

E foi descendo o morro, quase escorregando. Quando se voltou, viu o preto parado e mudo. A carabina segura pelas duas mãos, na frente do corpo. Todo a sua figura se recortava em pedra negra, contra o azul claro do céu. A cabeça levantada, o peito aberto, os olhos no além, parecia mais um guardião do templo, o porteiro e guia mudo da sua nação. Andou mais um pouco e tornou a se voltar. Andou mais um pouco e tornou a se voltar. Isidoro tinha sumido de vez na luz. Agora ele ia sozinho, quase corria. Não se voltou mais para trás . Alcançou a rua, passou pela igreja das Mercês.


Autran Dourado
Os Sinos da Agonia
Difel. São Paulo.

4ª edição. 1981.