terça-feira, 19 de novembro de 2013

G. RAMOS


Passeando da mesa para a janela e da janela para a mesa, deu-nos esclarecimentos:

― Os senhores ficam alojados aqui. Na sala vizinha há um oficial preso. Os senhores prometem não comunicar-se com ele.

Olhei a porta cerrada, o tabique baixo. Facilmente estabeleceríamos comunicação, mas que nos interessava isso, se nem sabíamos quem estava do outro lado? Faríamos sem custo a promessa, mas capitão Lobo não se importou com ela: não nos perguntou se prometíamos, afirmou que prometíamos e encerrou a questão. Esteve meia hora a conversar com volubilidade, afirmativo, às vezes sublinhando a frase com movimentos enérgicos. Não ria, não sorria: as idéias deviam parecer-lhe coisas terrivelmente sérias. Parava para escutar, atento, aprovando ou desaprovando com a cabeça, retomava depois o discurso e o passeio, ambos em linha reta. Curioso que apenas se movesse da mesa para a janela, onde fazia uma ligeira parada, e da janela para a mesa, onde novamente se detinha. Era como se a mesa constituísse uma barreira e o separasse da porta: os seus passos percorriam exatamente metade da sala. Também a fala tinha pequenas pausas, correspondentes àquelas estações, embora o interlocutor se mantivesse calado. Não me animaria a convidá-lo a sentar-se, pois ele figurava o dono da casa, mas puxei uma cadeira, desembaracei-a da roupa e da valise ali postas na véspera, joguei à cama estes objetos. Ele fingiu não perceber o oferecimento mudo e continuou o exercício invariável.

O comandante se conservara de pé cinco minutos. Agora, colaborando na palestra longa, convencia-me de que esses homens não se sentavam na minha presença para eu não me resolver a sentar-me diante deles. Esta certeza me levava a usar cautela, medir as palavras ― e a conversa se reduzia quase a um solilóquio.

Impossível qualquer aproximação. Pouco inclinado a desabafos, certamente não ia expandir-me a um desconhecido, talvez disposto a analisar-me. De minha parte observava-o e a observação não me induzia a desconfiança. A linguagem clara, modos francos, às vezes estabanados, a exceder os limites da polidez comum, diziam-me que ali se achava um homem digno. O gesto rijo martelava a idéia, o olho brilhante, ligeiramente oblíquo, donde parecia desprender-se uma faísca de insensatez, fixava-se na gente, insensível e frio. Devia ser um tormento para criaturas dissimuladas suportar aquela dureza metálica de verruma. Não deixou de fumar um instante: deitava fora a ponta do cigarro, introduzia outro na piteira comprida em excesso. Súbito parou o monólogo, ofereceu-nos toalhas e convidou-nos a acompanhá-lo. Atravessamos um corredor, descemos uma pequena escada, chegamos ao pátio interno, paramos, abriu uma porta:

― Os senhores usam este banheiro. Só este.

Chamou um tipo graduado, com duas ou três divisas e concluiu:

― Podem vir aqui acompanhados por um sargento ou cabo. Adeus.

Eu queria saber se havia inconveniência na compra de alguns troços miúdos que me faltavam. Não havia nenhuma.

― Dê as suas encomendas ao faxina. Até amanhã.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere.
1º vol. Viagens.
José Olympio. Rio de Janeiro.

1ª edição. 1953.