Passeando da mesa para a janela e da janela para a mesa, deu-nos
esclarecimentos:
― Os senhores ficam alojados aqui. Na sala vizinha há um oficial
preso. Os senhores prometem não comunicar-se com ele.
Olhei a porta cerrada, o tabique baixo. Facilmente
estabeleceríamos comunicação, mas que nos interessava isso, se nem sabíamos
quem estava do outro lado? Faríamos sem custo a promessa, mas capitão Lobo não
se importou com ela: não nos perguntou se prometíamos, afirmou que prometíamos
e encerrou a questão. Esteve meia hora a conversar com volubilidade,
afirmativo, às vezes sublinhando a frase com movimentos enérgicos. Não ria, não
sorria: as idéias deviam parecer-lhe coisas terrivelmente sérias. Parava para
escutar, atento, aprovando ou desaprovando com a cabeça, retomava depois o
discurso e o passeio, ambos em linha reta. Curioso que apenas se movesse da
mesa para a janela, onde fazia uma ligeira parada, e da janela para a mesa,
onde novamente se detinha. Era como se a mesa constituísse uma barreira e o
separasse da porta: os seus passos percorriam exatamente metade da sala. Também
a fala tinha pequenas pausas, correspondentes àquelas estações, embora o
interlocutor se mantivesse calado. Não me animaria a convidá-lo a sentar-se,
pois ele figurava o dono da casa, mas puxei uma cadeira, desembaracei-a da
roupa e da valise ali postas na véspera, joguei à cama estes objetos. Ele
fingiu não perceber o oferecimento mudo e continuou o exercício invariável.
O comandante se conservara de pé cinco minutos. Agora,
colaborando na palestra longa, convencia-me de que esses homens não se sentavam
na minha presença para eu não me resolver a sentar-me diante deles. Esta
certeza me levava a usar cautela, medir as palavras ― e a conversa se reduzia
quase a um solilóquio.
Impossível qualquer aproximação. Pouco inclinado a desabafos,
certamente não ia expandir-me a um desconhecido, talvez disposto a analisar-me.
De minha parte observava-o e a observação não me induzia a desconfiança. A
linguagem clara, modos francos, às vezes estabanados, a exceder os limites da
polidez comum, diziam-me que ali se achava um homem digno. O gesto rijo
martelava a idéia, o olho brilhante, ligeiramente oblíquo, donde parecia
desprender-se uma faísca de insensatez, fixava-se na gente, insensível e frio.
Devia ser um tormento para criaturas dissimuladas suportar aquela dureza
metálica de verruma. Não deixou de fumar um instante: deitava fora a ponta do
cigarro, introduzia outro na piteira comprida em excesso. Súbito parou o
monólogo, ofereceu-nos toalhas e convidou-nos a acompanhá-lo. Atravessamos um
corredor, descemos uma pequena escada, chegamos ao pátio interno, paramos,
abriu uma porta:
― Os senhores usam este banheiro. Só este.
Chamou um tipo graduado, com duas ou três divisas e concluiu:
― Podem vir aqui acompanhados por um sargento ou cabo. Adeus.
Eu queria saber se havia inconveniência na compra de alguns
troços miúdos que me faltavam. Não havia nenhuma.
― Dê as suas encomendas ao faxina. Até amanhã.
Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere.
1º vol. Viagens.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1953.