Certamente
achava eu um especial encanto naquelas brilhantes projeções que pareciam emanar
de um passado merovíngio e passeavam em redor de mim tão antigos reflexos de
história. Mas não posso descrever que mal-estar me causava aquela intrusão do
mistério e da beleza em um quarto que eu acabara de encher com minha
personalidade a ponto de não dar mais atenção a ele do que a meu próprio eu.
Cessando, assim, a influência anestésica do hábito, punha-me então a pensar e a
sentir: coisas tão tristes. Aquela maçaneta da porta de meu quarto, que se
diferenciava para mim de todas as maçanetas de porta do mundo, pelo fato de que
parecia abrir-se por si, sem que eu tivesse necessidade de torcê-la, de tal se
me tornara inconsciente seu manejo, ei-la que servia agora de corpo astral a
Golo. E assim que tocavam a sineta para o jantar, apressava-me em correr ao
refeitório, onde todas as noites esparzia sua luz a grande lâmpada de teto, que
nada sabia de Golo nem de Barba-Azul, e que conhecia meus pais e o assado de
caçarola; e caía nos braços de mamãe, a quem as desgraças de Geneviève de
Brabant me tornavam mais querida, ao passo que os crimes de Golo me faziam
examinar com mais escrúpulo minha própria consciência.
Marcel
Proust
Em
Busca do Tempo Perdido
volume
I
No
Caminho de Swann
tradução
de Mário Quintana
Globo.
São Paulo, SP. 2009.