quarta-feira, 20 de novembro de 2013

FRIEIRO


1943
13 de dezembro

As cãs de uma geração. Os mais velhos chefes de fila do movimento “modernista” de 1922 estão sendo festejados pelos companheiros de geração ou seus epígonos, assim que completam cinqüenta anos. Primeiro festejou-se Manuel Bandeira, depois Mário de Andrade e agora por último Tristão de Ataíde.

Que significam essas comemorações? A de celebrar o retour d’âge como um acontecimento feliz? Mas que espécie de retour d’âge é o que se festeja? Fisiológico ou literário?

Em qualquer dos casos, é uma efeméride melancólica: lembra que a velhice se aproxima.

Mas um escritor, aos cinqüenta, não é velho. Na Europa, está na força da criação. Aqui, nessa idade, já o querem embalsamar.

Chama-se “jovem”, na França, a geração que tem ou vai ter quarenta anos. E para o escritor a vida começa realmente aos quarenta.

14 de dezembro

A Academia Mineira de Letras instaurou os Prêmios “Diogo de Vasconcelos” e “Bernardo Guimarães”, o primeiro de ensaios e o último de contos. O Moacir Andrade faz parte da comissão julgadora de contos e será o relator. Concorreram vinte e tantos contistas. Claro que o Moacir não tem tempo para perder com o exame de toda essa literatura. Que fez ele? Deu os contos à Araci, sua amásia, que, por sua vez, distribuiu-os pelas pessoas da casa ― uma sobrinha, um filho e uma moça da vizinhança ― para lerem e julgarem uma parte, enquanto ela se encarregava da outra.

16 de dezembro

Confissão de Tasso da Silveira, que eu recorto de um jornal: “Guardei da adolescência o sabor da humildade, do sofrimento silencioso, da abnegação serena e simples.”

Humildade! Como os homens se ignoram! Conversei com o Tasso uma única vez. Tive dele uma impressão desagradável. Pareceu-me imensamente vaidoso, cheio de estrepes, fanático e sofisticado.

18 de dezembro

No Metrópole, The Moon and Sixpence, filme da United tirado do romance do mesmo nome, poor Sommerset Maugham. Adaptação falsificada, como é costume no cinema, mas realização agradável, isto é, feita para agradar ao público de gosto mediano que freqüenta as salas de projeções. Interpretação excelente de George Sanders (SStrickland), Herbert Marshall (Geoffrey Wolfe) e uma pequena, nova nos filmes, Elena Verdugo (Ata), um tipo hispano-azteca (ou que dá essa impressão), uma adolescente maravilhosamente bela, bem diversa da insípida girl de Hollywood, fabricada em série.

20 de dezembro ― Começaram as chuvas. Já está tudo encharcado de água. Saio de casa como um escafandrista: roupa de lã, pull-over, capa, galochas, guarda-chuva. E ainda chego molhado à repartição.

21 de dezembro ― O Wilson Noronha apresentou-me ontem na Imprensa, um anão acondroplásico: Percy Lau, desenhista de muito talento, que esteve em Diamantina colhendo aspectos para o Guia daquela cidade, a editar-se pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Um polichinelo ruivo, de voz fanhosa, mas de presença agradável. O Wilson disse-me, depois, que era casado e tinha um filhinho. Casado com uma senhora muito bonita, frisou. Por que não? Talvez ela seja até muito feliz. Diz o doutor Mararion que esses anões ― como o Don Sebastián de Morla do quadro de Velázquez ― costumam esconder sob a sua catadura grotesca uma incrível aptidão para o amor.

22 de dezembro ― O Elias Johanny é considerado o maior cacete e o dono da pior urucubaca da cidade. Pois o Menegale (o Guimarães, língua viperina) disse que o Roberto Franck é a tradução alemã do Elias Johanny, feita pelo Karl Weissmann.

Com essa diferença: o Johanny é muito burro e o Franck, passavelmente inteligente.

O Guilhermino César falou-me do Rio Grande do Sul e das saudades que sente de Minas lá. Tudo o que é de Minas parece bom e amável ao mineiro que se encontra longe da sua terra. Tudo. “Até o Elias Johanny, se aparecesse, ― disse o Guilhermino ― eu o receberia com satisfação, braços abertos. “

24 de dezembro ― Sou ateu, mas isso não quer dizer que eu não seja religioso. É absurdo identificar sentimento religioso com teísmo. Por isso Schopenhauer entendia que a língua filosófica substituiria vantajosamente o termo mal constituído de ateísmo pelo de não-judaísmo, ou seja a recusa de crer em um Deus pessoal, pois na opinião do filósofo, só o Judaísmo e as religiões que dele procedem são, no rigor da palavra, religiões teístas.

Mas a gente precisa crer em alguma coisa, ainda que seja nas cores de um clube de football.

25 de dezembro ― Leitura: o voluminho de Guillermo de Torre: Menéndez Pelayo y las dos Españas.

27 de dezembro ― Das l8 às 23, ontem, na Casa do Baile, da Pampulha. Dois gin tonic, jantar, quatro danças com a Noêmia e regresso ao sweet home. Para a Noêmia, que sofre da vesícula biliar, e para mim, que não a tenho mais, as farras têm de ser bem moderadas.

31 de dezembro ― Lá se foi o ano. Deixá-lo ir. Esta data, para mim ― ano velho, ano novo ― já não me soa gratamente há muito. Na verdade, é-me indiferente. Todo ano novo, para mim, é velho, cada vez mais velho, irremissivelmente. Só há uma defesa: a indiferença. Não a resignação, que não é do meu feitio. A indiferença. Que importa, se envelhecemos rapidamente e nos aproximamos da morte, cada dia mais? Que importa viver?

Só penso no minuto que passa. Se estou bem-disposto, com saúde, sinto-me contente. Trabalho, leio, escrevo, palestro com alguma pessoa amiga, vou ao cinema, durmo tranqüilo. É todo o meu ideal de vida, no momento.

No instante em que escrevo, sinto-me satisfeito porque posso contemplar, o corpo bem-disposto, a cabeça leve, o céu azul, puríssimo, nesta clara manhã de ar leve e sedativo. Contentamento animal, estragado um pouco por estas reflexões e outras que o cérebro incessantemente segrega.


Eduardo Frieiro
Novo Diário
Itatiaia. Belo Horizonte.
1986.