Todos os dias em Combray,
desde o final da tarde, muito antes do momento em que deveria ir para a cama e
ficar, sem dormir, longe de minha mãe e de minha avó, o quarto de dormir
tornava-se o ponto fixo e doloroso de minhas preocupações. Bem se haviam
lembrado, para distrair-me nas noites em que me achavam com um ar muito
melancólico, de presentear-me com uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha
lâmpada, enquanto não chegava a hora de jantar; a lanterna, à maneira dos
primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da idade gótica, sobrepunha à
opacidade das paredes, impalpáveis criações, sobrenaturais aparições multicores
onde se pintavam legendas como em um vitral vacilante e efêmero. Mas com isso
ainda mais crescia minha tristeza, pois a simples mudança de iluminação
destruía o hábito que eu tinha de meu quarto, e graças ao qual este se me
tornava suportável, descontado o suplício de ir deitar-me. Agora já não o
reconhecia e sentia-me inquieto como em um quarto de hotel ou de chalé , aonde
tivesse chegado pela primeira vez, ao desembarcar de um trem.
Marcel Proust
em busca do tempo perdido
volume I
no caminho de swann
tradução de mário quintana
Globo. São Paulo, SP. 3ª edição. 5ª reimpressão.
2009.