sábado, 23 de novembro de 2013

GENTE MUITO APTA PARA O REINO DO CÉU


Minha avó Mariazinha Silveira não era de doçuras, mas tinhas muitas amigas, era cordial e gostava de ouvir velhas contadeiras de histórias em relatos longuíssimos. Alguns deles rimados e cantarolados. Recordo-me de um longo conto sobre o rei dom Sebastião, morto pelos mouros mas encantado. Mais claramente recordo a longuíssima história dos doze pares de França. A principal dessas contadeiras, sinhá Sara, tinha noite e hora marcadas para atender a sua clientela, recontando a mesma história que às vezes durava muitas sessões consecutivas.

Mas vovó se ocupava mesmo era de trabalhar. Pedalava sem descanso sua máquina de costura, noite e dia. Recebia e fazia visitas principalmente aos domingos. Suas visitas nunca iam à sala de visitas, ficavam rodeando-a ali pela sala onde ela costurava e pela cozinha.

No seu tempo não havia estrangeiros na cidade. Os primeiros foram uns turcos, que devagarinho foram tomando conta do comércio. Lojas de uma porta, duas portas, até quatro portas. Seriam judeus, mas essa palavra em Montes Claros significaria matadores de Cristo, bons para ser apedrejados. Ninguém lá conhecia nenhum, só turcos. Vovó Mariazinha me advertia muito para não brincar com os filhos deles, nem olhar para as moças bonitas que trouxeram, dizendo: “Cuidado! São bois de cu branco”.

Dessa minha avó, o que mais recordo é sua gargalhada trinada, clara, alegre.

Gosto de lembrar do meu avô Olegário. Comerciante do mercado e tabelião. Dirigia a construção de um asilo da São Vicente de Paula para os pobres e às vezes saía pedindo esmolas para a sua obra. Eu ia com ele pelo gosto que me dava carregar a sacola de veludo vermelho por fora e verde por dentro, que eu agarrava e apalpava como uma coisa viva. A lembrança melhor que tenho do vovô era ele abrindo um armário muito preto para tirar lá de dentro umas bananas maduras muito amarelas que me dava.

Sempre fui muito agarrado a mamãe. Não tinha nada desses apegos freudianos. Tinha era um zelo e um ciúme ferozes dela. Assaltei o médico que operava suas amígdalas, quando correu sangue, a ponto de a enfermeira ter de separar-me dele, que balançava o bisturi acima de minha cabeça. Em outra ocasião, eu tinha doze anos, quando mamãe voltou para casa com o cabelo cortado à moderna, sem o coque que sempre usava, caí sobre ela com pancadas, tão enraivecido que tive de ser arrancado à força.

Mamãe foi uma brava mulher, com energia e coragem para completar o seu curso normal depois de viúva, enfrentar o trabalho de criar, sem ajuda, seus dois filhos. Acabou por criar também seus irmãos mais novos. Augusto, o mais velho, que herdou o cartório de vovô Olegário, só precisou do apoio dela. Morreu moço de uma septicemia, deixando uma filhinha.

Otávio, que esperava suceder a Augusto no cartório, foi logrado por Cyro dos Anjos, que, poderoso na política, fez nomear seu velho pai, Augusto dos Anjos, para o cargo. Um abuso, pois se tratava de um cartório hereditário, como continuou sendo depois nas mãos do povo de Cyro. Otávio teve que se fazer comerciário e depois comerciante. Abriu loja em Brasília de Minas, a velha Vila de Contendas, onde eu passava minhas férias de ginásio. Acabou se tornando o esteio de meu irmão Mário. Meu tio Jacinto seguiu o mesmo caminho e abriu comércio em Unaí, já perto de Goiás, onde fui vê-lo uma vez. Lembro-me de que passei por uma fazenda antiga cercada de muros de pedra empilhada. O povo dali tinha um jogo forte que era lutarem os homens dois a dois usando os facões como se fossem espadas. O dono da fazenda levou tamanho lanho na cara que, cicatrizado, lhe deu uma fisionomia feiíssima. Esse meu tio acabou tesoureiro público.


Darcy Ribeiro
Confissões
Companhia das Letras. São Paulo, SP.

1997.