Minha
avó Mariazinha Silveira não era de doçuras, mas tinhas muitas amigas, era
cordial e gostava de ouvir velhas contadeiras de histórias em relatos
longuíssimos. Alguns deles rimados e cantarolados. Recordo-me de um longo conto
sobre o rei dom Sebastião, morto pelos mouros mas encantado. Mais claramente
recordo a longuíssima história dos doze pares de França. A principal dessas
contadeiras, sinhá Sara, tinha noite e hora marcadas para atender a sua
clientela, recontando a mesma história que às vezes durava muitas sessões
consecutivas.
Mas
vovó se ocupava mesmo era de trabalhar. Pedalava sem descanso sua máquina de
costura, noite e dia. Recebia e fazia visitas principalmente aos domingos. Suas
visitas nunca iam à sala de visitas, ficavam rodeando-a ali pela sala onde ela
costurava e pela cozinha.
No
seu tempo não havia estrangeiros na cidade. Os primeiros foram uns turcos, que
devagarinho foram tomando conta do comércio. Lojas de uma porta, duas portas,
até quatro portas. Seriam judeus, mas essa palavra em Montes Claros
significaria matadores de Cristo, bons para ser apedrejados. Ninguém lá
conhecia nenhum, só turcos. Vovó Mariazinha me advertia muito para não brincar
com os filhos deles, nem olhar para as moças bonitas que trouxeram, dizendo:
“Cuidado! São bois de cu branco”.
Dessa
minha avó, o que mais recordo é sua gargalhada trinada, clara, alegre.
Gosto
de lembrar do meu avô Olegário. Comerciante do mercado e tabelião. Dirigia a
construção de um asilo da São Vicente de Paula para os pobres e às vezes saía
pedindo esmolas para a sua obra. Eu ia com ele pelo gosto que me dava carregar
a sacola de veludo vermelho por fora e verde por dentro, que eu agarrava e
apalpava como uma coisa viva. A lembrança melhor que tenho do vovô era ele
abrindo um armário muito preto para tirar lá de dentro umas bananas maduras
muito amarelas que me dava.
Sempre
fui muito agarrado a mamãe. Não tinha nada desses apegos freudianos. Tinha era
um zelo e um ciúme ferozes dela. Assaltei o médico que operava suas amígdalas,
quando correu sangue, a ponto de a enfermeira ter de separar-me dele, que
balançava o bisturi acima de minha cabeça. Em outra ocasião, eu tinha doze
anos, quando mamãe voltou para casa com o cabelo cortado à moderna, sem o coque
que sempre usava, caí sobre ela com pancadas, tão enraivecido que tive de ser
arrancado à força.
Mamãe
foi uma brava mulher, com energia e coragem para completar o seu curso normal
depois de viúva, enfrentar o trabalho de criar, sem ajuda, seus dois filhos.
Acabou por criar também seus irmãos mais novos. Augusto, o mais velho, que
herdou o cartório de vovô Olegário, só precisou do apoio dela. Morreu moço de
uma septicemia, deixando uma filhinha.
Otávio,
que esperava suceder a Augusto no cartório, foi logrado por Cyro dos Anjos,
que, poderoso na política, fez nomear seu velho pai, Augusto dos Anjos, para o
cargo. Um abuso, pois se tratava de um cartório hereditário, como continuou
sendo depois nas mãos do povo de Cyro. Otávio teve que se fazer comerciário e
depois comerciante. Abriu loja em Brasília de Minas, a velha Vila de Contendas,
onde eu passava minhas férias de ginásio. Acabou se tornando o esteio de meu
irmão Mário. Meu tio Jacinto seguiu o mesmo caminho e abriu comércio em Unaí,
já perto de Goiás, onde fui vê-lo uma vez. Lembro-me de que passei por uma
fazenda antiga cercada de muros de pedra empilhada. O povo dali tinha um jogo
forte que era lutarem os homens dois a dois usando os facões como se fossem
espadas. O dono da fazenda levou tamanho lanho na cara que, cicatrizado, lhe
deu uma fisionomia feiíssima. Esse meu tio acabou tesoureiro público.
Darcy
Ribeiro
Confissões
Companhia
das Letras. São Paulo, SP.
1997.