Sem dúvida que eu estava agora bem desperto, meu corpo
dera uma última volta e o bom anjo da certeza imobilizara tudo em redor de mim,
deitara-me sob minhas cobertas, em meu quarto, e pusera aproximadamente em seu
lugar, no escuro, minha cômoda, minha mesa de trabalho, minha lareira, a janela
da rua e as duas portas. Mas, embora soubesse que não me achava nesses quartos,
cuja presença a ignorância do despertar me apresentara ao menos como possível,
sem todavia oferecer-me sua imagem distinta, a verdade é que me fora dado um
impulso à memória; em geral, não tentava adormecer logo em seguida; passava a
maior parte da noite a recordar minha vida de outrora, em casa de minha tia-avó
em Combray, em Balbec, em Paris, em Doncières, em Veneza, em outras partes
ainda, a recordar os lugares, as pessoas que ali conhecera, tudo o que delas
tinha visto, o que me haviam contado a seu respeito.
Marcel Proust
em busca do tempo perdido
volume I
no caminho de swann
tradução de mário quintana
Globo. São Paulo, SP. 3ª edição. 5ª reimpressão.
2009.