A imobilidade das coisas que
nos cercam talvez lhes seja imposta por nossa certeza de que essas coisas são
elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. A
verdade é que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para
averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no
escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito entorpecido para se
mover, procurava, segundo a forma de seu cansaço, determinar a posição dos
membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para
reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua memória, a memória de
suas costelas, de seus joelhos, de suas espáduas, apresentava-lhe,
sucessivamente, vários dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno deles
as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça imaginada,
redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo que meu pensamento, hesitante no limiar
dos tempos e das formas, tivesse identificado a habitação, reunindo as diversas
circunstâncias, ele ― meu corpo ― ia recordando, para cada quarto, a espécie do
leito, a localização das portas, o lado para que davam as janelas, a existência
de um corredor, e isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer e que
reencontrava ao despertar. Meu corpo anquilosado, procurando adivinhar sua
orientação, imaginava-se, por exemplo, virado para a parede, em um grande leito
de dossel, e eu logo dizia comigo: “Pois não é que acabei adormecendo antes que
a mamãe me viesse dar boa noite!”; achava-me então no campo, em casa de meu
avô, morto havia muitos anos; e meu corpo, o flanco sobre o qual eu repousava,
fiel zelador de um passado que meu espírito nunca deveria esquecer,
recordava-me a chama da lâmpada de cristal da Boêmia, em forma de urna suspensa
do teto por leves correntes, a lareira de mármore de Viena, em meu quarto de
dormir, em Combray, em casa de meus avós, em remotos dias que naquele instante
eu julgava atuais, sem formar deles uma imagem exata e que tornaria a ver muito
melhor dali a momentos, quando despertasse de todo.
Marcel Proust
em busca do tempo perdido
volume I
no caminho de swann
tradução de mário quintana
Globo. São Paulo, SP. 3ª edição. 5ª reimpressão.
2009.