sábado, 16 de novembro de 2013

MARCEL


A imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta por nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas. A verdade é que, quando eu assim despertava, com o espírito a debater-se para averiguar, sem sucesso, onde poderia achar-me, tudo girava em redor de mim no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito entorpecido para se mover, procurava, segundo a forma de seu cansaço, determinar a posição dos membros para daí induzir a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e dar um nome à moradia onde se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de suas espáduas, apresentava-lhe, sucessivamente, vários dos quartos onde havia dormido, enquanto em torno deles as paredes invisíveis, mudando de lugar segundo a forma da peça imaginada, redemoinhavam nas trevas. E antes mesmo que meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado a habitação, reunindo as diversas circunstâncias, ele ― meu corpo ― ia recordando, para cada quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado para que davam as janelas, a existência de um corredor, e isso com os pensamentos que eu ali tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar. Meu corpo anquilosado, procurando adivinhar sua orientação, imaginava-se, por exemplo, virado para a parede, em um grande leito de dossel, e eu logo dizia comigo: “Pois não é que acabei adormecendo antes que a mamãe me viesse dar boa noite!”; achava-me então no campo, em casa de meu avô, morto havia muitos anos; e meu corpo, o flanco sobre o qual eu repousava, fiel zelador de um passado que meu espírito nunca deveria esquecer, recordava-me a chama da lâmpada de cristal da Boêmia, em forma de urna suspensa do teto por leves correntes, a lareira de mármore de Viena, em meu quarto de dormir, em Combray, em casa de meus avós, em remotos dias que naquele instante eu julgava atuais, sem formar deles uma imagem exata e que tornaria a ver muito melhor dali a momentos, quando despertasse de todo.


Marcel Proust
em busca do tempo perdido
volume I
no caminho de swann
tradução de mário quintana
Globo. São Paulo, SP. 3ª edição. 5ª reimpressão.
2009.