sábado, 23 de novembro de 2013

MARCEL


Ao passo sacudido de seu cavalo, Golo, movido por atroz desígnio, saía da pequena floresta triangular que aveludava de um verde sombrio a vertente de uma colina e avançava aos solavancos para o castelo da pobre Geneviève de Brabant. Esse castelo se recortava em uma linha curva que não era senão o limite de uma das ovais de vidro insertas no caixilho que se introduzia na lanterna. Não eera mais que um muro de castelo e tinha a sua frente um descampado onde cismava Geneviève, que usava um cinto azul. O castelo e o terreno eram amarelos e eu não esperava o momento de vê-los para ficar sabendo que cor tinham, pois, antes dos vidros do caixilho, a sonoridade aurirrubra do nome de Brabant mo havia mostrado com toda a evidência. Golo parava um instante para ouvir com tristeza a arenga lida em voz alta por minha tia-avó e que ele parecia compreender muito bem, ajustando sua atitude às indicações do texto, com uma brandura que não excluía certa majestade; depois se afastava na mesma andadura sacudida. E coisa alguma podia deter sua lenta cavalgada. Se se movia a lanterna, eu distinguia o cavalo de Golo, que continuava a avançar por sobre as cortinas da janela, enfunando-se em suas dobras, afundando em suas fendas. O próprio corpo de Golo, de uma essência tão sobrenatural como a de sua montaria, aproveitava-se de qualquer obstáculo material, de qualquer objeto incômodo que encontrasse no caminho, tomando-o como ossatura e tornando-o interior, ainda que fosse a maçaneta da porta, à qual logo se adaptava e onde sobrenadava invencivelmente sua veste vermelha, e seu rosto sempre tão pálido e tão melancólico, mas que não deixava transparecer nenhuma inquietude proveniente daquela transvertebração.


Marcel Proust
Em Busca do Tempo Perdido
vol. I No Caminho de Swann
tradução de Mário Quintana