terça-feira, 26 de novembro de 2013

MARCEL


Se essas voltas de minha avó pelo jardim se efetuavam após o jantar, uma coisa havia que tinha o poder de fazê-la entrar em casa: era ― em um dos momentos em que a revolução de seu passeio a trazia periodicamente, como um inseto, para diante das luzes da saleta, one eram servidos os licores na mesinha de jogo ― quando minha tia-avó lhe gritava: “Bathilde! Vem ver se impedes teu marido de beber conhaque!” Para arreliá-la, com efeito (trouxera para a família de meu pai um espírito tão diferente que todos zombavam dela e atormentavam-na), como a meu avô estavam proibidos os licores, costumava minha tia-avó fazê-lo beber algumas gotas. Minha pobre avó entrava, rogava ardentemente ao marido que não provasse do conhaque; ele irritava-se, tomava apesar de tudo seu gole, e ela tornava a partir, triste, desanimada, mas sorridente, pois era tão humilde de coração e tão bondosa que sua ternura pelos outros e a pouca importância que dava à própria pessoa e a seus sofrimentos se conciliavam, em seu olhar, em um sorriso no qual, contrariamente ao que se lê no rosto de muitos humanos, não havia ironia senão para consigo mesma, e, para nós todos, como que um beijo de seus olhos, que não podia ver aqueles a quem queria sem os acariciar apaixonadamente com o olhar. Esse suplício que lhe infligia minha tia-avó, o espetáculo das inúteis súplicas de minha avó e de sua fraqueza, de antemão vencida, tentando embalde tirar o cálice a meu avô, era dessas coisas a cuja vista a gente se habitua mais tarde a considerar sorrindo e a tomar resoluta e alegremente o partido do perseguidor, para nos persuadirmos de que não se trata de perseguição; causavam-me então tamanho horror que me vinha a vontade de bater em minha tia-avó. Mas logo que ouvia: “Bathilde! Vem ver se impedes teu marido de beber conhaque!”, já homem pela covardia, eu fazia o que todos nós fazemos, uma vez que somos grandes, quando há diante de nós sofrimentos e injustiças: não queria vê-los; ia soluçar lá no alto da casa, ao lado da sala de estudos, sob os telhados, em uma pequena peça que cheirava a íris, também perfumada por uma groselheira silvestre que crescera fora entre as pedras da muralha e passava um ramo florido pela janela entreaberta. Destinada a um uso mais especial e mais vulgar, aquela peça, de onde se tinha vista, de dia, até o torreão de Roussainvile-le-Pin, serviu-me por muito tempo de refúgio, sem dúvida por ser a única que me era permitido fechar à chave, para todas as minhas ocupações que demandavam uma inviolável solidão: a leitura, a cisma, as lágrimas e a voluptuosidade. Ah!, eu então não sabia que, muito mais tristemente que as pequenas infrações ao regime do marido, era minha falta de vontade, minha saúde delicada, a incerteza que ambas as coisas projetavam em meu futuro, o que preocupava minha avó durante suas incessantes perambulações da tarde e da noite, quando se via passar e repassar, obliquamente erguido para o céu, seu belo rosto de faces morenas e sulcadas, que, no declínio da vida, haviam-se tornado quase cor de malva como as lavras pelo outono, e que ela cobria, ao sair, com um véu curto e nas quais, trazida ali pelo frio ou por algum triste pensamento, estava sempre a secar uma lágrima involuntária.


Marcel Proust
Em Busca do Tempo Perdido
volume I  -  No Caminho de Swann
tradução de Mário Quintana

Globo. São Paulo, SP. 2009.