Um homem que dorme mantém em
círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao
acordar consulta-os instintivamente e neles verifica em um segundo o ponto da
terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; essa ordenação, porém,
pode-se confundir e romper. Se acaso pela madrugada, após uma insônia, vem o
sono surpreendê-lo durante a leitura, em uma posição muito diversa daquela em
que se dorme habitualmente, basta seu braço erguido para deter e fazer recuar o
sol, e, no primeiro minuto em que desperte, já não saberá da hora, e ficará
pensando que acabou apenas de deitar-se. Se adormece em posição ainda mais
insólita e contrafeita, por exemplo sentado em uma poltrona depois do jantar,
dar-se-á então uma completa reviravolta nos mundos desorbitados, a cadeira
mágica o fará viajar a toda a velocidade no tempo e no espaço, e, no momento
antes de abrir as pálpebras, pensará que está deitado alguns meses antes, em
uma terra diferente. Quanto a mim, no entanto, bastava que estivesse a dormir
em meu próprio leito e que o sono fosse bastante profundo para relaxar-se a tensão
de meu espírito, o qual perdia então a planta do local onde eu adormecera;
assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde me achava, no
primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza
primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir no fundo de um
animal; estava mais despercebido que o homem das cavernas, mas aí a lembrança ―
não ainda do local em que me achava, mas de alguns outros que havia habitado e
onde poderia estar ― vinha a mim como um socorro do alto para me tirar do nada,
de onde não poderia sair sozinho; passava em um segundo por cima de séculos de
civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, depois
de camisas de gola virada, recompunha pouco a pouco os traços originais de meu
próprio eu.
Marcel Proust
em busca do tempo perdido
volume I
no caminho de swann
tradução de mário quintana
Globo. São Paulo, SP. 3ª edição. 5ª reimpressão.
2009.