sexta-feira, 29 de novembro de 2013

MARCEL


Ficávamos todos suspensos das notícias que minha avó iria trazer-nos do inimigo, como se se pudesse hesitar entre um grande número possível de assaltantes, e logo em seguida meu avô dizia: “Reconheço a voz de Swann.” Com efeito, só pela voz podia a gente reconhecê-lo, não se distinguia bem seu rosto de nariz recurvo e olhos verdes, a alta fronte circundada de cabelos de um loiro-avermelhado, penteados à Bressant, pois conservávamos o menos possível de luz no jardim, para não atrair os mosquitos, e eu, disfarçadamente, como o queria minha avó, ia dizer que trouxessem
refrescos, pois ela considerava mais amável que os refrescos fossem servidos como por costume, e não excepcionalmente, só para os visitantes. Embora muito mais jovem do que ele, o s. Swann era muito afeiçoado a meu avô, que fora um dos melhores amigos de seu pai, homem excelente, mas singular, a quem bastava uma ninharia, às vezes, para interromper os impulsos afetivos ou desviar-lhe o curso do pensamento. Várias vezes por ano, ouvia eu meu avô contar, à mesa, sempre as mesmas anedotas a respeito da atitude que tivera o velho Swann por ocasião da morte de sua esposa, de quem cuidava dia e noite. Meu avô, que de há muito não o via, acorrera para junto dele, na propriedade que possuíam os Swann nos arredores de Combray, e conseguira fazê-lo deixar por um momento, todo em pranto, a câmara mortuária, para que não estivesse presente quando pusessem o corpo no caixão. Deram alguns passos pelo parque, onde havia um pouco de sol. Deram alguns passos pelo parque, onde havia um pouco de sol. De repente, o sr. Swann, pegando pelo braço a meu avô, exclamara: “Ah, meu velho amigo, que felicidade passearmos juntos por um tempo tão lindo como este! Não acha isso bonito, todas as árvores, esses pilriteiros e meu tanque? Você nunca me felicitou por meu tanque! Mas que cara mais murcha é essa?! Não está sentindo este ventinho agora? Ah!, por mais que se diga ainda existem coisas boas nesta vida, meu caro Amadeu!”. Nisto, voltou-lhe a lembrança da morta e, achando decerto muito complicado explicar como se deixava arrastar em tal momento a um impulso de alegria, contentou-se em passar a mão pela testa e esfregar os olhos e os vidros do lornhão, em um gesto que lhe era habitual, sempre que se lhe apresentava ao espírito uma questão delicada.


Marcel Proust
Em Busca do Tempo Perdido
volume I. No Caminho de Swann.
Tradução de Mário Quintana.
Globo. São Paulo, SP.
5ª reimpressão da 3ª edição.
2009.