segunda-feira, 25 de novembro de 2013

MARCEL


Após o jantar, ai de mim, via-me obrigado a deixar mamãe, que ficava a conversar com os outros no jardim, se fazia bom tempo, ou na saleta, para onde todos se retiravam quando o tempo era mau. Todos, menos minha avó, que achava “uma lástima ficar-se encerrado, no campo” e que tinha incessantes discussões com meu pai, nos dias de chuva muito forte, porque ele me mandava ler no quarto em vez de ficar fora. “Não é assim que o tornarão robusto e enérgico”, dizia ela, “ainda mais esse menino que tanto precisa adquirir forças e vontade.” Meu pai dava de ombros e examinava o barômetro, pois gostava de meteorologia, enquanto minha mãe, evitando fazer ruído para não perturbá-lo, olhava –o com enternecido respeito, mas não muito fixamente, como para não parecer que tentava devassar o mistério de sua superioridade. Mas minha avó, essa, por qualquer tempo, mesmo quando chovia forte e Françoise recolhia as preciosas cadeiras de vime para que não se molhassem, viam-na no jardim deserto e fustigado pelo aguaceiro erguendo as mechas desordenadas e grisalhas para que sua fronte melhor se impregnasse da salubridade do vento e da chuva. “Enfim, respira-se!”, dizia ela, e percorria os caminhos encharcados do jardim ― alinhados muito simetricamente para seu gosto pelo novo jardineiro desprovido de sentimento da natureza e a quem meu pai perguntara desde manhã cedo se o tempo se comporia ―, com aquele seu passo entusiástico e brusco, regulado pelos diversos impulsos que lhe suscitavam na alma a embriaguez da tempestade, o poder da higiene, a estupidez de minha educação e a simetria dos jardins, antes que pelo desejo, que lhe era desconhecido, de evitar os salpicos de lama na saia cor de ameixa e que a cobriam até uma altura que era sempre um desespero e um problema para sua criada.


Marcel Proust
Em Busca do Tempo Perdido
volume I  -  No Caminho de Swann
tradução de Mário Quintana

Globo. São Paulo, SP. 2009.