terça-feira, 30 de abril de 2013
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
Tudo
era aqui desequilíbrio. Grandes excessos e grandes deficiências, as da nova
terra. O solo, excetuadas as manchas de terra preta ou roxa, de excepcional
fertilidade, estava longe de ser o bom de se plantar nele tudo o que quisesse,
do entusiasmo do primeiro cronista. Em grande parte rebelde à disciplina
agrícola. Áspero, intratável, impermeável. Os rios, outros inimigos da
regularidade do esforço agrícola e da estabilidade da vida de família.
Enchentes mortíferas e secas esterilizantes ― tal o regime de suas águas. E
pelas terras e matagais de tão difícil cultura como pelos rios quase
impossíveis de ser aproveitados economicamente na lavoura, na indústria ou no
transporte regular de produtos agrícolas ― viveiros de larvas, multidões de
insetos e de vermes nocivos ao homem.
Particularmente
ao homem agrícola, a quem por toda parte afligem mal ele inicia as plantações, as
“formigas que “fazem muito dano” à lavoura; a “lagarta das roças; as pragas que
os feiticeiros índios desafiam os padres que destruam com os seus sinais e suas
rezas.
Contrastem-se
essas condições com as encontradas pelos ingleses na América do Norte, a
começar pela temperatura: substancialmente a mesma que a da Europa que a da
Europa ocidental (média anual de 56ºF), considerada a mais favorável ao
progresso econômico e à civilização à européia. De modo que não parece tocar ao
caso brasileiro a generalização do professor Bogart sobre o povo por ele
vagamente chamado de “raça latino-americana”. O qual nem por se achar rodeado
de grandes “riquezas naturais se teria elevado às mesmas condições de progresso
agrícola e industrial que os anglo-americanos. Essa incapacidade atribui o
economista a ser a tal “raça latino-americana” “a weak, ease loving race” e não
“a virile, energetic people” como os anglo-americanos. Estes, sim, souberam
desenvolver os recursos naturais à sua disposição: “devoted themselves to the exploitation
of the natural resources with wonderful success”. Mas foi esse mesmo povo tão
viril e enérgico que fracassou em Old Providence e nas Bahamas.
Gilberto
Freyre
Casa-Grande
& Senzala
segunda-feira, 29 de abril de 2013
DE DIANTE PRA TRÁS
Deixado
João Curiol no meu lugar, e esse tinha muita valia. Rastejei, tomei saída,
conforme tinha de ir: pelos quintais das casas. Ainda virei, relanceando.
Sempre queria ver Diadorim. O querer-bem da gente se despedindo feito um riso e
soluço, nesse meio de vida.
Avancei,
furando os terreiros e as hortas das casas, eu debaixo de armas, nos arreios.
Toda a parte ali tinha gente nossa, que com brados me saudavam: conforme vale,
quando um chefe mostra mor valentia. Gente como o Jõe Bexiguento, sobrechamado
o “Alpercatas”. E estava lá o João Nonato ― que dava boa-sorte, com o bom ar.
Avancei, rompi uma cerquinha de taquara, contornei um pano de muro, onde o
Paspe tinha furado os adobes, cavando torneiras. E dei fé: que o Jiribibe vinha
me acompanhando. O menino bom. Os olhinhos dele a gente só via era porque eram
inventados de pretos. ― “Será, da banda de lá, estão bem governando, os
clavinoteiros?” ― ele me disse. Aí, por que me dizia? Soubesse não que o
brinquedo agora era mortal? Sobre o que, se riu, me apresentando: o que era, no
fofo da terra, debaixo duma roseira, um gatinho preto-e-branco, dormindo seu
completo sossego, fosse surdo, refestelado: ele estava até de mãos postas...
Mas, perto de mim, veio grão d’aço ― que varou cheiamente um pé de mamoeiro. ―
“Vigia, te abaixa!” ― eu ralhei com o Jiribibe. A gente ouvia a narração, ou
cita seja, destemperada, dos inimigos, e um desentoar de cantiga, que toda
pessoa era filho-da, segundo a qual. Aos canalhas! Mas mais xingava o Jiribibe,
ripostando. Daí, depressa, ganhamos trincheiras, atrás dum forno de assar
biscoitos: e berraram punhadão de disparos, para nosso lado, chega semelhava
rajada de chuva-e-pedra. Lugar danoso! Aguardamos, deitados ― “Te foge, Jibibe,
que figuro eles têm gente atirando de cima de árvores...” ― eu total
aconselhei. Assim rastejávamos. E pouco faltava para o quintal do sobrado: só
uma cerca miúda, com um xuxuzeiro dependurado com xuxus grandes; eram uns xuxus
enormes. ― “Vam” bora, Chefe!” ― que o Jiribibe
gritou. E caiu morto, para pra cá ― acertado na testa. Não gritei, e
rastejei. Ao quando dar o derradeiro lance, na porta da cozinha do sobrado,
derrubei uma bacia grande, que lá em-pé encostada estava. Aí entrei. Aquela
bacia atrás de mim levou uma carga de tirázios, com a qual retiniu toda, lata
velha... No eu entrar, os que ali vi me saudaram: ― “Epa, Chefe!” Respondi: ―
“Eh, epa!” E, naquele instante, pensei: aquela guerra já estava ficando
adoidada. E medo não tive. Subi a escada.
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
domingo, 28 de abril de 2013
UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
ROMÃNTICO
quando
pensando pressinto
que
estes olhos tão lindos
pó
e cinza hão de virar,
ah,
que saudades que sinto
do
bom cálice de absinto
que
tomei naquele bar...
1958
1958
OTELO E SANT'IAGO
OS
VERMES
“Ele
fere e cura!” Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também
curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma
dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos,
livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do
oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros,
para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.
―
Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem
escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.
Não
lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra,
repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos
roídos fosse ainda um modo de roer o roído.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro
HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA
Escritores e artistas, substituindo a ação pelas
palavras, acreditavam poder fazer mais, e era o projeto do Teatro de
Experiência, criado em São Paulo por Flávio de Carvalho e logo fechado pela
polícia, o que motivou o protesto do deputado Zoroastro de Gouveia, a 19 de
dezembro, na Assembléia Nacional Constituinte:
O teatro da (sic)
Experiência, ali, acaba de ser brutalmente fechado pela Polícia. Um grupo de
literatos, conhecidos homens de reputação artística em todo o Brasil, lançou-se
a esse trabalho, verdadeiramente inóspito em momentos de paixão política, de
organizar um teatro completamente independente.
Ao que se diz, a intervenção policial resultou de
desordens irrompidas no recinto, mais do que pelo conteúdo subversivo do Bailado do Deus Morto, as máscaras de
alumínio, bem como a capa do mesmo metal com que mais tarde circulou o único
número da RASM Revista Anual do Salão de
Maio), explicam-se pela indústria metalúrgica de que Flávio de Carvalho era
então proprietário.
Mais revolucionárias, embora cercadas de menos
sensacionalismo, eram algumas obras publicadas nesse mesmo ano de 1933, como
por exemplo, juntamente com Psiquiatria e
Psicanálise, de Artur Ramos, os seus “ensaios de psicanálise ortodoxa e herética”,
Freud, Adler, Jung, com prefácio,
aliás pouco inteligente, de Afrânio
Peixoto, e O Direito de Morrer sem Dor,
no qual Royo-Villanova y Morales discutia o problema da eutanásia (tradução de
J. Catoira e C. Barbosa), além de Uma
Definição Biológica do Crime, de Dionélio Machado, impresso em Porto
Alegre. Acrescentem-se os incontáveis volumes que continuavam a ser escritos
sobre os últimos movimentos armados, e que iam de A Verdade sobre a Revolução de Outubro, de Barbosa Lima Sobrinho,
ao Acuso!, de João Neves da Fontoura,
passando pelos Sucessos Militares de
Julho de 1922, de Mário Tibúrcio Gomes Carneiro; O Despertar de São Paulo, de Menotti del Picchia (juntamente com um
volume de Poesias); A Sala da Capela, de Vivaldo Coaraci; Ilha Grande, de Orígenes Lessa; Minas na Aliança Liberal e na Revolução,
de Aurino de Morais, e 1930: História da
Revolução na Paraíba, de Ademar Vidal.
Tudo isso já era, ou já começava a ser, História: O Brasil Continua, dizia o título
irônico de Álvaro Moreira, a que podemos juntar na estante historiográfica
propriamente dita: História da
Civilização Brasileira; O Marquês de Abrantes; Gomes Carneiro, o General da
República, e Vida e Amores de Castro
Alves, todos do prolífico Pedro Calmon; O
Conde d’Eu, de Luís da Câmara Cascudo; À
Margem da História do Brasil, de Vicente Licínio Cardoso; Ementário da História de Minas: Felipe dos
Santos Freire e A Sedição de Vila
Rica em 1720, empresa antimitológica de Feu de Carvalho; O Doutor Blumenau, de J. Ferreira da
Silva; O Condestável do Império, de
Osvaldo Orico; O Senador José Bento, de
Amadeu de Queirós; Os Amores de Canabarro,
de Otelo Rosa; Minha Vida, de
Medeiros e Albuquerque, em terceira edição (juntamente com Laura), e Romance de Meu Pai,
de Jaime Balão Júnior.
Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960)
Cultrix. Editora da Universidade de São Paulo.
São Paulo, SP. 1ª edição. 1979.
sábado, 27 de abril de 2013
PANEM NOSTRUM
Torva
Babel das lágrimas, dos gritos,
Dos
soluços, dos ais, dos longos brados,
A
Dor galgou os mundos ignorados,
Os
mais remotos, vagos infinitos.
Lembrando
as religiões, lembrando os ritos,
Avassalara
os povos condenados,
Pela
treva, no horror, desesperados,
Na
convulsão de Tântalos aflitos.
Por
buzinas e trompas assoprando
As
gerações vão todas proclamando
A
grande Dor aos frígidos espaços...
E
assim parecem, pelos tempos mudos,
Raças
de Prometeus titâneos, rudos,
Brutos
e colossais, torcendo os braços!
Cruz
e Sousa
Broquéis
quinta-feira, 25 de abril de 2013
G. RAMOS
Na fronte calma de d. Irene esboçava-se uma ligeira
ruga, e eu admirava-lhe a dignidade simples, a decisão rigorosa de
abelha-mestra. Apesar de sentir prazer em ouvi-la, desejava que ela se
retirasse: inquietava-me saber que a qualquer momento viriam buscar-me, e isto
a perturbaria. Depois a notícia daquela visita com certeza lhe ocasionaria
prejuízo. Levantava-me, procurava um meio de afastá-la, os ouvidos abertos aos
rumores da rua. Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia,
deteve-se à porta — e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuz ou
mulato, entrou na sala.
― Que demora, tenente! Desde meio-dia estou à sua
espera.
― Não é possível, objetou o rapaz empertigando-se.
―Como não? Está aqui a valise pronta, não falta nada.
O sujeitinho deu um passo à retaguarda, fez
meia-volta, aprumou-see, encarou-me. Tinha-lhe observado esse curioso sestro um
mês antes, na repartição, onde me surgira pleiteando a aprovação de uma
sobrinha reprovada. Eu lhe mostrara um ofício em que a diretora do grupo
escolar de Penedo contava direito aquele negócio: a absurda pretensão de se
nomear para uma banca especial fora de tempo.
― Impossível, tenente. Isso é anti-regulamentar.
Demais, se a garota não conseguiu aprender num ano, certamente não foi
recuperar em dias o tempo perdido. Sua sobrinha não é nenhum gênio, suponho.
O tenente recuara, rodara sobre os calcanhares,
perfilara-se em atitude perfeitamente militar e replicara com absoluta
impudência:
― É o que ela é. Um gênio. Posso afirmar-lhe que é
gênio.
E voltara a repetir o mesmo pedido, usando as mesmas
palavras. Depois de meia hora de marchas
e contramarchas cansativas, fizera a saudação, a última reviravolta, abrira a
portinhola e deixara o gabinete em passos rítmicos. No dia seguinte regressara
com uma carta de recomendação, repisara a exigência, lera impenetrável o
regulamento e o ofício, ouvira a recusa
fatal ― e, no fim do resumo do caso enfadonho, o recuo, o movimento circular, o
aprumo, a solicitação invariável, o obtuso louvor da sobrinha:
― Um gênio, eu garanto. Admita que ela seja realmente
um gênio.
Gastara-me a paciência e irritara-me. Agora, finda a
pirueta, olhando a valise, prova de que não haviam sabido guardar segredo,
encolheu os ombros, sorriu, excessivamente gentil:
― Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer:
acho bom levar mais roupa. É um conselho.
― Obrigado, tenente.
Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas
de pequeno burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros
chegados na véspera, pelo correio. Despedi-me, D. Irene se espantava, talvez
sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos,
agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na
cara de minha mulher sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe
percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto
a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã
serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização
da ameaça. Diante da cabriola e do sorriso do mulato, pareceu despertar, mas
não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: por que vinha
prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências
desarrazoadas?
― Quando quiser, tenente.
Saímos da sala e entramos no automóvel , um grande
carro oficial.
Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
quarta-feira, 24 de abril de 2013
GR
Espalham-se
por todo o livro as deixas para que se descubra o sexo de Diadorim; colhemos
apenas as mais características, pois coleta mais copiosa destoaria da importância
do pormenor em relação ao romance.
Os
traços físicos delineiam-se em pinceladas dispersas pelo livro, num puzzle cujas peças se vão ordenando na
memória do leitor e atenuam, até certo ponto, o choque da revelação final. São
as mãos que seguram as rédeas “tão brancamente”, os braços bem feitos que
mostrava ao lavar a roupa, a cintura fina, o passo curto, as “pestanas
compridas, oss moços olhos”, “a boca melhor bem feita, o nariz fino,
afiladinho”. Numa vereda, ele se vira para Riobaldo “com um ar quase de
meninozinho em suas miúdas feições”; e quando ambos conhecem Otacília, Riobaldo
se admira de que ela não se tenha encantado por Diadorim “sendo tão galante
moço, as feições caprichadas”.
Diadorim
guarda tesoura de prata e navalha em “capanga com lavores (...) toda
historienta”. Corta os cabelos de Riobaldo e empresta-lhe a navalha para que se
barbeie; ele próprio, apenas apara os cabelos diante do espelhinho dependurado
num galho de árvore.
E
há o segredo que ele fazia do próprio corpo que “era um escondido”. Segredo
entremostrado em vários trechos do livro: o banho de madrugada ― sozinho no
escuro das matas ― que Riobaldo atribui a superstição de caborjudo; a fuga de
Reinaldo, ferido; os desaparecimentos inexplicáveis que tanto intrigavam o
companheiro; o jaleco que ele não tirava nunca, escondendo as formas, como a
filha de D. Martinho.
O
pudor feminil já está naquela ordem do Menino, na beira do rio: ―”Longe de mim
isso faz! ―. Moços, manda Riobaldo tomar banho e o deixa sozinho na beira do
rio. E quando desmaia, ao saber da morte de Joca Ramiro e os companheiros
tentam desapertar-lhe o colete, a vigilância do subconsciente o faz tornar em
si, “em mais vermelho o rosto, numa fúria de pancada”.
M.
Cavalcanti Proença
Trilhas
no Grande Sertão
Os
Cadernos de Cultura ― 114.
Ministério
da Educação e Cultura.
Departamento
de Imprensa Nacional.
Rio
de Janeiro. 1958.
terça-feira, 23 de abril de 2013
MACHADO
Exatamente
nesse momento histórico, depois do meado do século XIX, com o atraso de cem
anos sobre a Europa, sentem a ficção e as personagens de Machado de Assis a
decomposição da fé. Na hora de despedida, procura, revivendo o drama
jansenista, reconstruir o mundo dilacerado, no grande mergulho da natureza.
Schopenhauer serve a Pascal, num jogo anacrônico de referências, em que as
sugestões racionalizam a visão do mundo. Não admira que, em lugar de Deus unido
ao povo, à comunidade soldada pelo amor, encontre átomos perdidos e hostis, que
refletem a imagem do Diabo. A mulher e a mãe natureza personificam o mal, o mal
que é a substância da terra, das suas armadilhas e da sua glória. A rota da
divindade se alheou do povo, da comunidade, da igreja, numa viagem inversa ao
mais religioso dos escritores do século XIX, Dostoievsky. Deus, dominado no seu
mistério, depois de imergir no mundo, se dessacraliza, convertendo-se, na ação
do homem, em fragmentos que a velha teologia estigmatizava de pecado. A
comunidade desaparece da consciência do homem, queimada pelas grandes crises do
Renascimento, até que dela, individualizada, não reste senão a sombra do homo economicus. As esferas morais e
religiosas não mais existem como demônios específicos e autônomos, na marcha
batida para o mundo amoral e a-religioso. As personagens de Machado de Assis,
encontrando o mundo transformado, já perderam a saudade da fé, o sentimento das
realidades divergentes e inconciliáveis, que inspirava o pathos da tragédia. Na diferença do universo, apenas ativo por
efeito de sua força intrínseca, Deus não só está mudo, senão que se ausentou do
destino dos homens. Sem saudade da fé, mas, não obstante, com a sombra da
saudade, sombra que se espanca no horizonte, o humorismo está na esteira do
desespero e da tragédia frustrada. Daí a afinidade de Machado de Assis com
Pascal, que ele freqüenta assiduamente, na busca de um fantasma que já se
desintegrou, deixando no ar os vestígios longínquos da face em fragmentos.
Dentro de tais condicionamentos, afastado do Deus de Abraão, do Deus de Isaac e
do Deus de Jacó, a religião, longe de ser um porto, seria um extravio, indigno
da razão e da sabedoria do tempo. Seria engano supor que a elocubração racional
tenha levado o homem do século XIX tão longe. Para a escalada, o equipamento
essencial seria a cegueira ao ato religioso e a dessacralização do culto.
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis: a Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro. 3ª edição. 1988.
segunda-feira, 22 de abril de 2013
OS NOVOS INCONFIDENTES
APOSENTADORIA (cont.)
Waldemar
Alberto Borges Rodrigues Filho
Waldemar
Amaro Ferreira
Waldemar
Cresto
Waldemar
de Souza
Waldemiro
de Souza
Waldir
de Almeida Lentz
Waldir
Reis
Waldomiro
Vitalino Souza
Waldir
Gil
Walfrido
Lucas Eviolanto
Walmir
Barbosa de Menezes Britto
Walmir
Ventura Rego
Walmy
de Miranda Doyle
Waltênio
Ferreira Garcia
Walter
Batista de Andrade
Walter
Cavalcante Nogueira
Walter
da Silva
Walter
de Almeida
Walter
Dias de Oliveira
Walter
Jacob de Souza
Walter
Pedrosa de Amorim
Walter
Pereira dos Santos
Walter
Vianna
Wanderley
Guilherme dos Santos
Wanderval
Dias Luna
Washington de Oliveira Souza
William Fadel Sahione
William Maksond
William Salem
Wilmo Trindade de Oliveira
Wilson Barbosa Martins
Wilson Cardoso
Wilson da Silva Mendes
Wilson Ferreira Lima
Wilson Ferreto
Wilson Juvenato Reis
Wilson Modesto Ribeiro
Wilson Sidney Lobato
Yadir
Barros Tavares
Yara
Lopes Vargas
Yvone
Dias Avelino
Zeno
Nascimento Costa
Zoroasto
Ferreira Braz
Fonte:
Câmara
dos Deputados
domingo, 21 de abril de 2013
OS INCONFIDENTES
CARTA DO S. M. (AUX.) JOAQUIM PEDRO DA CÂMARA AO
VISCONDE DE BARBACENA; SÃO JOÃO DEL REI, 7-06-1789. (TRASLADO).
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor −− Em cumprimento
do que Vossa Excelência é servido mandar-me em ofício de trinta de maio
passado, ponho na presença de Vossa Excelência a carta de minha prima Dona
Joana de Meneses e Valadares, de que na mesma se faz menção, inclusa nesta, de
que é portador o Furriel José de Deus, Deus guarde a Vossa Excelência. São João
del Rei, sete de junho de mil e setecentos e oitenta e nove ─ Ilustríssimo e
Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena, Governador e Capitão General desta
Capitania. Joaquim Pedro da Câmara,
Sargento-Mor de Auxiliares. ─ E não se continha mais na dita carta, que sem
coisa que dúvida faça, aqui bem e fielmente trasladei da própria, que fica em
poder do Desembargador Pedro José Araújo de Saldanha, Juiz desta Devassa, à
qual me reporto; e com o mesmo Ministro esta conferi com o original; nesta Vila
Rica, aos quinze dias do mês de junho de 1789; e eu o Bacharel José Caetano
César Manitti, Escrivão nomeado que o escrevi, conferi e assinei.
Saldanha ─
José Caetano CésarManitti
EMANUEL E FEDERICO
Manuelzão
instava o povo para rezarem o terço, a mando do padre. As mulheres começavam.
As mulheres sempre iam se acrescentar todas de uma banda do pátio, se
desmisturando dos homens. A reza era mais delas. Houve um declarado de
respeito, os outros abrindo espaço para caminho, quando chegou o senhor do
Vilamão, de barba andó, o cabelo total embranquecido, trajado de vestimenta que
não se usava mais em parte nenhuma, o cavour
― sobretudo preto, com sobre-capinha que batia no cotovelo. Manuelzão sabia
quem era ele, homem de muitas posses, de longes distâncias dentro de suas
terras. Manuelzão o veio receber, levar pra entrar. O senhor do Vilamão já
estava quase cego, tão velhinho para andar, parecia todo de vidro, pensava que
os que falavam com ele estavam era pedindo esmola: respondia que Deus desse,
que ele na hora não tinha. Manuelzão explicava que isso não era, convidava,
pronunciava palavreado de mais escolha, mais bem lembrado. Mas aquele se
inteirara mesmo ancião, reperdido na palha de uma velhice. Assim mal enxergava
as pessoas, só supunha. Mas representava os altos gestos, talento de sucintos,
o estado mor de fidalguia. Tão esvaziado de si, de ser homem, não tinha mais os
temperos do corpo, o que ainda persistia nele era o molde do muito aprendido. E
Manuelzão, que o acompanhara adentro da casa, alçantes estandartes, de repente
sentia a dor de uma ferroada no machucado no pé, esbarrava no instante, sem
querer se abaixar nem soltar meio-gemido. Avistava o Adelço, perpassante no
fundo do corredor ― ah esse não dava préstimo de vir acomodar os hóspedes, nas
coisas da festa nem ajudava em nada; por certo, o Adelço tinha sofismado sempre
a idéia da festa, mesmo sem disso palavra dizer!
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
Corpo
de Baile, volume I
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
sexta-feira, 19 de abril de 2013
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
Então
Jesus entrou no Templo e expulsou todos os vendedores e compradores que lá
estavam. Virou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. E
disse-lhes: “Está escrito: Minha casa
será chamada casa de oração. Vós, porém, fazeis dela um covil de ladrões!”
Mt
21, 12-13
quinta-feira, 18 de abril de 2013
A BÍBLIA SAGRADA
Então Judá, aproximando-se dele, disse: “Rogo-te, meu
senhor, permite que teu servo faça ouvir uma palavra aos ouvidos de meu senhor,
sem que tua cólera se inflame contra teu servo, pois tu és como o próprio
Faraó! Meu senhor havia feito esta pergunta a seus servos: ‘Tendes ainda pai ou
um irmão?’E respondemos a meu senhor: ‘Nós temos o velho pai e um irmão mais
novo, que lhe nasceu na velhice; morreu o irmão deste, ele ficou sendo o único
filho de sua mãe e nosso pai o ama!’ Então disseste a teus servos: ‘Trazei-mo,
para que ponha meus olhos sobre ele; se ele deixar .’ Nós respondemos a meu
senhor: ‘O menino não pode deixar seu pai;ele deixar seu pai, este morrerá.’
Mas insististe junto a teus servos: ‘Se vosso irmão mais novo não descer
convosco, não sereis mais admitidos em minha presença.’ Quando, pois,
retornamos à casa de teu servo, meu pai, nós lhe relatamos , nós lhe relatamos
as palavras de meu senhor. E quando nosso pai disse: ‘Voltai para comprar um
pouco de víveres para nós,’ respondemos: ‘Não podemos descer. Não desceremos, a
não ser que venha conosco nosso irmão mais novo, porque não será possível
sermos admitidos à presença daquele homem sem que nosso irmão mais novo esteja
conosco.’ Então teu servo, meu pai, nos disse: ‘Vós bem sabeis que minha mulher
só me deu dois filhos: um me deixou e eu disse: foi despedaçado! E não o vi
mais até hoje. Se tirardes ainda este de junto de mim, e lhe suceder alguma
desgraça, na aflição faríeis descer minhas cãs ao Xeol.’ Agora, se eu chego à
casa de teu servo, meu pai sem que esteja comigo o rapaz cuja alma está ligada
à alma dele, logo que vir que o rapaz não esteja conosco ele morrerá, e teus
servos na aflição terão feito descer ao Xeol as cãs de teu servo, nosso pai. E
teu servo se tornou responsável pelo rapaz pelo rapaz junto de meu pai, nestes
termos: ‘Se eu não to restituir, serei culpado para com meu pai durante toda a
minha vida.’ Agora, que teu servo fique como escravo de meu senhor no lugar do
rapaz, e que este volte com seus irmãos. Como poderia eu retornar à casa de meu
pai sem ter comigo o rapaz? Não quero ver a infelicidade que se abaterá sobre
meu pai.”
Gn 44, 18-34
quarta-feira, 17 de abril de 2013
GENTE MUITO APTA PARA O REINO-DO-CÉU
PRÓLOGO
Escrevi
estas Confissões urgido por duas
lanças. Meu medo-pânico de morrer antes de dizer a que vim. Meu medo ainda
maior de que sobreviessem as dores terminais e as drogas heróicas trazendo com
elas as bobeiras do barato. Bobo não sabe de nada. Não se lembra de nada. Tinha
que escrever ligeiro, ao correr da pena. Hoje, o medo é menor, e a aflição
também. Melhorei. Vou durar mais do que pensava.
De
nada de irremediável suceder, terei tempo para revisões. Não ouso pensar que me
reste vida para escrever mais um livro. Nem preciso, já escrevi livros demais.
Mas admito que tirar mais suco de mim nesta porta terminal é o que quisera.
Impossível?
Este
livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e precisões, é um
mero reconto espontâneo. Recapitulo aqui, como me vem à cabeça, o que me
sucedeu pela vida afora, desde o começo, sob o olhar de Fininha, até agora,
sozinho neste mundo.
Muito
relato será, talvez, equivocado em alguma coisa. Acho melhor que seja assim,
para que meu retrato do que fui e sou me saia me saia tal como me lembro.
Neguei-me, por isso, a castigar o texto com revisões críticas e pesquisas. Isso
é tarefa de biógrafo. Se eu tiver algum, ele que se vire, sem me querer mal por
isso.
Quero
muito que estas minhas Confissões comovam.
Para isso as escrevi, dia a dia, recordando meus dias. Sem nada tirar por
vexame ou mesquinhez nem nada acrescentar por tolo orgulho. Meu propósito,
nesta recapitulação, era saber e sentir como é que cheguei a ser o que sou.
Quero
também que sejam compreendidas. Não por todos, seria demasia; mas por aqueles
poucos que viveram vidas paralelas e delas deram ou querem dar notícia. Nos
confessamos é uns aos outros, os de nossa iguala, não aos que não tiveram nem
terão vidas de viver, nem de confessar. Menos ainda aos pródigos de palavras de
fineza, cortesãos.
Quero
inclusive o leitor anônimo, que ainda não viveu nem deu fala. Mas tem coração
que pulsa, compassado com o meu. Talvez até me ache engraçado, se alegre e ria
de mim, se tiver peito. Não me quer julgar, mas entender, conviver.
Não
quero mesmo é o leitor adverso, que confunde sua vida com a minha, exigindo de
mim recordos amorosos e gentis, apagando os dolorosos, conforme sua pobre noção
do bem e da dignidade. O preço da vida se paga é vivendo, impávido, e
recordando fiel o que dela foi dor ou foi contentamento.
Termino
esta minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais
saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só
digo: “Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada. O
único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa
parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes ou de gozos.
Apagados, minerais. Para sempre mortos”.
Darcy
Ribeiro
Confissões
Companhia
das Letras. São Paulo.
1997.
segunda-feira, 15 de abril de 2013
ONDE CANTA O SABIÁ
O
PORTO DE MINHA INFÂNCIA
Minha
cidade, Cachoeiro de Itapemirim, tem uma origem fluvial. Os colonizadores que
subiam o rio em canoas, lutando com os índios, encontraram ali, a umas sete
léguas do mar, um outro embaraço ao seu avanço: um “encachoeirado” ou
“cachoeiro” que impedia a navegação. Para continuar, era preciso carregar as
embarcações por terra até em cima. E mesmo isso não valia muito a pena, porque,
dali para a frente, volta e meia iriam encontrar outras pedras e corredeiras
para atrapalhar.
Há
outra cidade no Espírito Santo que também se chamou Cachoeiro, pelo mesmo
motivo: ali terminava a navegação do rio Santa Maria. Assim nasceu Porto do Cachoeiro,
depois Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina em homenagem a uma das princesas;
hoje é apenas Santa Leopoldina.
Mas
voltemos a Itapemirim; junto à barra do rio, do lado direito, ainda se ergue o
belo sobradão do porto. Não promete durar muito: se não for logo restaurado e
receber um destino diferente ― escola, centro de artesanato, turismo, clube,
colônia de férias, albergue, qualquer coisa ― não demora a desabar. Foi nesse
porto que pensei quando uma pediram uma crônica sobre um porto qualquer. Mas
não como porto marítimo entre o Rio e Vitória; o que me interessa, como me
interessava na infância, era a navegação entre a Barra e Cachoeiro de
Itapemirim.
Houve
um capitão Deslandes, que hoje é nome de rua importante de Cachoeiro. Nascido
em Paranaguá, lutou na guerra do Paraguai e depois se mudou para o Espírito
Santo; para Vitória, a princípio, depois para Itapemirim; ali exerceu suas
profissões, que eram duas: fotógrafo e dentista. Esse homem habilidoso requereu
e conseguiu, em 1872, concessão para explorar a navegação a vapor do rio
Itapemirim. A 3 de abril de 1876 inaugurou-se a linha. O barco levava umas oito
horas para descer o rio, e dez a doze para subir. Chegou a haver seis vapores
nesse serviço, além de uma barca de passageiros. As informações que tenho, de
cronistas locais, nem sempre combinam muito bem, a não ser numa coisa: navegar
no Itapemirim sempre foi trabalho complicado e inseguro, principalmente na
época da seca, quando havia encalhes aborrecidos.
Rubem
Braga
As
Boas Coisas da Vida
domingo, 14 de abril de 2013
IMPERADOR DA LÍNGUA PORTUGUESA
Agora
torna a minha pergunta. E que faria n’este caso, ou que devia fazer o semeador
evangélico vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura?
Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse
muito depressa a casa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das
pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás Não por
certo. No mesmo texto de Ezequiel, com que argüístes, temos a prova. Já vimos
como dizia o texto que aqueles animais da carroça de Deus, quando iam não
tornavam: Nec revertebantur , cum
ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz, o mesmo
texto, que aqueles animais tornavam, à semelhança de um raio ou corisco: Ibant, et revertebantur in similitudinem
fulguris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam, à semelhança de um
raio, como diz o texto, que quando iam não tornavam? Porque quem vai, e
volta como um raio, não torna. Ir, e
voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim fez o semeador do nosso
Evangelho. Não o desanimou, nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira
perda: continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que n’esta e
última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu,
cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão
multiplicara cento: Et fecit fructum
centuplum.
Padre
Antônio Vieira
Sermão
da Sexagésima
sábado, 13 de abril de 2013
NÃO É MOTOR DE TUDO E NOSSA ÚNICA / FONTE DE LUZ, NA LUZ DE SUA TÚNICA?
Erros
meus, má fortuna, amor ardente
Em
minha perdição se conjuraram;
Os
erros e a fortuna sobejaram,
Que
para mim bastava o amor somente.
Tudo
passei; mas tenho tão presente
A
grande dor das cousas que passaram,
Que
as magoadas iras me ensinaram
A
não querer já nunca ser contente.
Errei
todo o discurso de meus anos;
Dei
causa a que a Fortuna castigasse
As
minhas mal fundadas esperanças.
De
amor não vi senão breves enganos,
Oh!
quem tanto pudesse, que fartasse
Este
meu duro Gênio de vinganças!
Luís
de Camões
sexta-feira, 12 de abril de 2013
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
A
importância do clima vai sendo reduzida à proporção que dele se desassociam
elementos de algum modo sensíveis ao domínio ou à influência modificadora do
homem. Parece demonstrado, por experiências recentes que nos é possível
modificar pela drenagem a natureza de certos solos, influenciando assim as
fontes de umidade para a atmosfera; alterar a temperatura pela irrigação de
terras secas; quebrar a força dos ventos ou mudar-lhes a direção por meio de
grandes massas de arvoredos convenientemente plantadas. Isso sem falar nas
sucessivas vitórias que vêm sendo obtidas sobre as doenças tropicais, amansadas
quando não subjugadas pela higiene ou pela engenharia sanitária.
De
modo que o homem já não é o antigo mané-gostoso de carne abrindo os braços ou
deixando-os cair, ao aperto do calor ou do frio. Sua capacidade de trabalho,
sua eficiência econômica, seu metabolismo alteram-se menos onde a higiene e a
engenharia sanitária, a dieta, a adaptação do vestuário e da habitação às novas
circunstâncias criam-lhe condições de vida de acordo com o físico e a
temperatura da região. Os próprios sistemas de comunicação moderna ― fáceis,
rápidos e higiênicos ― fazem mudar de ãosolo e de clima: o da qualidade e até
certo ponto o da quantidade de recursos de alimentação ao dispor de cada povo.
Ward salienta a importância do desenvolvimento da navegação a vapor, mais
rápida e regular que a navegação à vela: veio beneficiar grandemente as
populações tropicais. O mesmo pode dizer-se com relação aos processos de
preservação e refrigeração dos alimentos. Por meio desses processos e da
moderna técnica de transporte, o homem vem triunfando sobre a dependência
absoluta das fontes de nutrição regionais a que estavam outrora sujeitas as
populações coloniais dos trópicos.
Neste
ensaio, entretanto, o clima a considerar é o cru e quase que todo-poderoso aqui
encontrado pelo português em 1500: clima irregular, palustre, perturbador do
sistema digestivo; clima na sua relação com o solo desfavorável ao homem
agrícola e particularmente ao europeu, por não permitir nem a prática de sua
lavoura tradicional regulada pelas quatro estações do ano nem a cultura
vantajosa daquelas plantas alimentares a que ele estava desde há muitos séculos
habituado.
O
português no Brasil teve de mudar quase radicalmente o seu sistema de
alimentação, cuja base se deslocou, com sensível déficit, do trigo para a
mandioca; e o seu sistema de lavoura, que as condições físicas e químicas de
solo, tanto quanto as de temperatura ou de clima, não permitiram fosse o mesmo
doce trabalho das terras portuguesas. A esse respeito o colonizador inglês dos
Estados Unidos levou sobre o português do Brasil decidida vantagem, ali
encontrando condições de vida física e
fontes de nutrição semelhantes às da mãe-pátria. No Brasil verificaram-se
necessariamente no povoador europeu desequilíbrios de morfologia tanto quanto
de eficiência pela falta em que se encontrou de súbito dos mesmos recursos
químicos de alimentação do seu país de origem. A falta desses recursos como a
diferença nas condições meteorológicas e geológicas em que teve de processar-se
o trabalho agrícola realizado pelo negro mas dirigido pelo europeu dá à obra de
colonização dos portugueses um caráter de obra criadora, original, a que não
pode aspirar nem a dos ingleses na América do Norte nem a dos espanhóis na
Argentina.
Embora
mais aproximado o português que qualquer colonizador europeu da América do
clima e das condições tropicais, foi, ainda assim, uma rude mudança a que ele
sofreu transportando-se ao Brasil. Dentro das novas circunstâncias de vida
física, comprometeu-se a sua vida econômica e social.
Gilberto
Freyre
Casa-Grande
& Senzala
DE DIANTE PRA TRÁS
O
senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos
brancos... Viver ― não é? ― é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque
aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu,
depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?
Subi
aquela escada-de-redor, escutando a madeira nos meus passos, e avisando: ―
“Quem evém sou eu, minha gente!” ― repetido. Aquilo meio sombrio. Aquilo meio
sombrio, o ar que dava era como de ser antigo dia-de-domingo. Aí, notei que eu
mesmo arfava um pouco, e estava com uma sede. Por lá devia de ter algum pote
fresco ― imaginei. ― “É eu! minha gente...” ― eu disse; mesmo assim eles se
assustaram primeiro, depois tomaram satisfação por me ver. Os que na sala que
dava para a frente da rua estavam, os
quais eram: que o Araruta e o José Gervásio, nas armas; e o menino Guirigó e o
cego Borromeu, assentados no banco, encostado na parede para o interno. Esses
dois, muito juntos, como que tremiam um tanto; deviam de estar rezando.
―
Que e a mulher?” ― eu indaguei.
O
menino Guirigó queria mostrar: ela estava presa num quarto. Ela também
estivesse rezando? Corredor velho, para ele davam tantas portas, por detrás
duma delas tinham fechado a mulher, num cômodo. A chave estava na mão do cego
Borromeu. Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de me entregar;
rejeitei. ― Tem talha d’água, por aqui?” ― eu disse; eu tinha uma pressa
desordenada, de certo. ― “Diz que lá em baixo tem... ― foi o que o menino
Guirigó me deu resposta. Entendi que ele curtia sede, igualmente, e querendo
comigo ir ― por seguro temia descer sozinho a escada. E o cego Borromeu,
também, que não respondeu, mas que mexeu a boca, mole, mole, fazendo desse
rumor de quem termina de mastigar rapadura. Me enjoou. Mas ele não tinha comido
alguma coisa. Não tive comigo: ― “Tu me ouve, xixilado, tu me ouve? Assim tu me
dá respeito e agradece interesses de ter tomado conta de você, e trazido em
companhia minha, por todas as partes?!” Eu disse. Ele disse: ― “Deus vos
proteja, Chefe, dê ademão por nós todos... E de tudo peço perdão...” Ele se
ajoelhou. Ouvir e ver isso me embaraçasse, eu já pegava ponta de remorso.
Porque esse homem, sem visão carnal, de valia nenhuma, maldade minha era que
tinha sido a trazida dele, de em desde o começo de lugar onde ele cumpria sua
vida. E agora ele devia de padecer o redobrado medo, concebendo que vai ou vai
a gente fugisse dali, e ele para trás parasse, para as unhas dos outros. Mas a
cena desses todos pensamentos em mim foi ligeira demais, conforme não tinham
geração. A meio me lembro, e conto, é só para firmar minha capacidade. Como o
reslumbre, que, no tento da hora, eu prezei em Otacília , juízo vago. Como para
a janela eu fui, quase que na imaginação de botar meu olhar e haver de ver, no
longe tal, o lugar aonde ela andava. Conto, para o senhor conhecer quanta
espécie de causa, no mover da mente, no mero da tragagem de guerra. E o José
Gervásio e o Araruta, cada um em beira duma janela, agachados, carabinas em
mãos, as cheias cartucheiras. Para mim era que olhavam, estudados, querendo
algum qualquer sinal. E aí uma bala alta abelhou, se seguindo sozinha, muito
rente, com cujo barulho de música que fez eu conheci que era de comblém. Eu
tinha de dar mais espertação ainda àqueles dois. Tenência. Para uma janela me
cheguei. E endureci no rifle. Em volta relanceei. Eu ― o bedegas!
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
terça-feira, 9 de abril de 2013
NÃO É MOTOR DE TUDO E NOSSA ÚNICA / FONTE DE LUZ, NA LUZ DE SUA TÚNICA?
HISTÓRIA
ANTIGA
No
meu grande otimismo de inocente,
Eu
nunca soube por que foi... um dia,
Ela
me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe
por que era... Não sabia...
Desde
então, transformou-se de repente
A
nossa intimidade correntia
Em
saudações de simples cortesia
E
a vida foi andando para a frente...
Nunca
mais nos falamos... vai distante...
Mas,
quando a vejo, há sempre um vago instante
Em
que seu mudo olhar no meu repousa,
E
eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que
ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas
que é tarde demais para dizê-la...
Raul
de Leoni
Luz
Mediterrânea
segunda-feira, 8 de abril de 2013
UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
MADRIGAL
Companheira,
a noite é longa, muito longa,
e
temos de pisá-la, passo a passo.
Companheira,
largo, muito largo é o oceano,
e
temos de cruzá-lo em verdes naus.
Companheira,
profundo, mui profundo é o pranto,
e
temos de cantar com os marinheiros.
Companheira,
um dia, um dia belo
de
sol, de muito sol, de rosas
vermelhas
e amarelas,
nos
fará navegar por um largo
oceano de águas e flores.
Azul,
vermelho, amarelo.
1959
Suplemento
Cultural de “O Diário”, 13/6/59
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