segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
A BÍBLIA SAGRADA
Jacó,
vendo que havia mantimentos à venda no Egito, disse a seus filhos: “Por que
estais aí a olhar uns para os outros? Eu soube,” disse-lhes, “que há
mantimentos para vender no Egito. Descei e comprai mantimento para nós, a fim
de que vivamos e não morramos.” Os dez dos irmãos de José desceram, pois, ao
Egito para comprar trigo. Quanto a Benjamim, o irmão de José, Jacó não o enviou
com os outros: “Não convém”, disse para consigo, “que lhe suceda alguma
desgraça.”
Foram,
pois, os filhos de Israel comprar mantimento misturados com outros forasteiros,
porque a fome assolava a terra de Canaã. José — ele tinha autoridade na terra—
era quem vendia o mantimento a todo o povo da terra. Os irmãos de José chegaram
e se prostraram diante dele, com a face
por terra. Logo que José viu seus irmãos ele os reconheceu, mas fingiu ser
estrangeiro para eles e lhes falou duramente. Perguntou-lhes: “De onde vindes?”
E eles responderam: “Da terra de Canaã, para comprar os víveres.”
Assim
José reconheceu seus irmãos, mas eles não o reconheceram. José se lembrou dos
sonhos que tivera seu respeito e lhes
disse: “Vós sois espiões! É para reconhecer os pontos fracos da terra que
viestes. .” Eles protestaram: “Não, meu senhor! Teus servos vieram para comprar
víveres. Somos todos filhos de um mesmo homem, somos sinceros, teus servos não
são espiões.” Mas ele lhes disse: “Não! Foi para ver os pontos fracos da terra
que viestes.” Eles responderam: “Teus servos eram doze irmãos, nós somos filhos
de um mesmo homem, na terra de Canaã: o mais novo está agora com nosso pai ee
há um que não mais existe.” José retomou: “É como eu vos disse: vós sois espiões! Eis como sereis provados:
pela vida do Faraó, não partireis daqui sem que primeiro venha o vosso irmão
mais novo! Enviai um de vós para buscar vosso irmão; os demais ficam
prisioneiros. Provareis vossas palavras e se verá se a verdade está convosco ou
não. Se não, pela vida do Faraó, sois espiões.”
E pôs a todos na prisão por três dias.
No
terceiro dia, José lhes disse: “Eis o que fareis para ter salva a vida, pois eu
temo a Deus: se sois sinceros, que um de vossos irmãos fique detido na vossa
prisão; quanto aos demais, parti levando o mantimento de que vossas famílias
necessitam. Trazei-me vosso irmão mais novo: assim vossas serão verificadas e
não morrereis.” — Assim fizeram eles. — Eles disseram uns aos outros: “Em
verdade, expiamos o que fizemos a nosso irmão: vimos a aflição de sua alma,
quando ele nos pedia graça, e não o ouvimos. Por isso nos veio esta aflição.”
Ruben lhes respondeu: “Não vos disse para cometerdes falta contra o menino? Mas
vós não me ouvistes e eis que se nos pede conta de seu sangue.” Eles não sabiam
que José os compreendia, porque, entre José e eles estava o intérprete. Então
se afastou deles e chorou. Depois voltou para eles e lhes falou; tomou dentre
eles a Simeão e o algemou sob seus olhos.
Gn
42, 1-24
FEBEAPÁ
— Falar
em “causo” a respeito de G. R., na suposição de que o autor seja um contador de
“causos” (que o Altíssimo me perdoe por usar este palavrão).
— Usar
a palavra “causo” em qualquer texto sobre G.R., o que embute um equívoco
gigantesco sobre a natureza da linguagem do A.
— Achar
que a palavra (?) “causo” é de uso comum em Minas Gerais, fora da boca dos que
querem parecer que falam “mineiro”.
sábado, 29 de dezembro de 2012
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
A
indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África parece ter sido sempre a
mesma em Portugal como em outros trechos da Península. Espéie de
bicontinentalidade que correspondesse em população assim vaga e incerta à
bissexualidade no indivíduo. E gente mais flutuante que a portuguesa,
dificilmente se imagina; o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo
o que é seu, dando-lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade, às
vezes perturbada por dolorosas hesitações, e ao caráter uma especial riqueza de
aptidões , ainda que não raro incoerentes e difíceis de se conciliarem para a
expressão útil ou para a iniciativa prática.
Ferraz
de Macedo, a quem a sensibilidade patriótica de seus conterrâneos não perdoa
o de algumas conclusões justas, entre
muitas de um grosso exagero, procurando definir o tipo normal português, deu
logo com a dificuldade fundamental : a falta de um tipo dinâmico determinado. O
que encontrou foram hábitos, aspirações, interesses, índoles, vícios, virtudes
variadíssimas e com origens diversas —
étnicas, dizia ele; culturais, talvez dissesse mais cientificamente.
Entre
outros, verificou Ferraz de Macedo no português os seguintes característicos
desencontrados: a “genosia violenta” e o “gosto pelas anedotas de fundo
erótico”, o “brio, a franqueza, a lealdade”; a pouca iniciativa individual, o
“patriotismo vibrante”; a “imprevidência”, “a inteligência”; “o fatalismo”, “a
primorosa aptidão para imitar”.
Mas
o luxo de antagonismos no caráter português, surpreendeu-o magnificamente Eça
de Queirós. O seu Gonçalo, d’A Ilustre
Casa de Ramires, é mais que a síntese do fidalgo — é a síntese do português
de não importa que classe ou condição. Que todo ele é e tem sido desde Ceuta,
fs Índia, da descoberta e da colonização do Brasil como o Gonçalo Ramires: !cheio
de fogachos e entusiasmos que acabam logo em fumo”, mas persistente e duro
“quando se fila à sua idéia”; de “uma imaginação que o leva a exagerar até a
mentira” e ao mesmo tempo de um “espírito prático sempre atento à realidade
útil”; de uma “vaidade, de “uns
escrúpulos de honra”, de “um gosto de se arrebicar, de luzir” que vão quase ao
ridículo, mas também de uma grande “simplicidade”; melancólico ao mesmo tempo
que “palrador, sociável”, generoso, desleixado, trapalhão nos negócios; vivo e
fácil em “compreender as coisas”: sempre à espera de “algum milagre, do velho
Ourique que sanará todas as dificuldades”; desconfiado de si mesmo, acovardado,
encolhido até que um dia se decide e aparece um herói.” Extremos desencontrados
de introversão e extroversão ou alternativas de sintonia e esquizoidia, como se
diria em moderna linguagem científica.
Considerando
no seu todo, o caráter português dá-nos principalmente a idéia de “vago impreciso”,
pensa o crítico e historiador inglês Aubrey Bell; e essa imprecisão é que
permite ao português reunir dentro de si tantos contrastes impossíveis de se
ajustarem no duro e anguloso castelhano, de um perfil mais definidamente gótico
e europeu. O caráter português —
comparação do mesmo Bell — é como um rio que vai correndo muito calmo e
de repente se precipita em quedas de água: daí passar do energia na vida particular e a revoluções na
vida pública”; da “docilidade “ a “ímpetos de arrogância e crueldade”; da
“indiferença” a “fugitivos entusiasmos”, “amor ao progresso”, “dinamismo”... É
um caráter todo de arrojos súbitos que entre um ímpeto e outro se compraz em
certa indolência voluptuosa muito oriental, na saudade, no fado, no lausperene.
“Místicos e poéticos” — são ainda os portugueses
segundo Bell (o inglês que depois de Beckford melhor tem sentido e compreendido
a gente e a vida de Portugal), “com intervalos de intenso utilitarismo [...]
caindo dos sonhos vão numa verdadeira volúpia de proveito imediato; das alturas
da alegria na tristeza, no desespero, no suicídio; da vaidade no pessimismo
[...] alternando a indolência com o amor da aventura e do esporte”.
Gilberto
Freyre
Casa
Grande & Senzala
em
Intérpretes do Brasil, vol II
Coordenação,
seleção de livros e prefácio
de
Silviano Santiago
Nova
Aguilar. Rio de Janeiro. 2002.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
DE DIANTE PRA TRÁS
Como
estavam indo abrir aquele quarto, trazendo do corredor a mulher do Hermógenes.
Ela visse. — A senhora chegue na janela,
dona, espia para a rua... — o que João Concliz falou. Aquela Mulher não era
malina. — A senhora conheça, dona, um
homem demõiado, que foi: mas que já começou a feder, retalhado na virtude do
ferro...” Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse que não, sacudindo só de
leve a cabeça, como respeito de seriedade. — Eu tinha ódio dele... — ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda não
estava bem de mim, da dor que me nublou, tive de sentar no banco da parede.
Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de todos, eu em malmolência. — Tomaram as roupas da mulher nua? Era a
Mulher , que falava . Ah, e a Mulher rogava: — Que trouxessem o corpo daquele
rapaz moça, vistoso, o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas
lágrimas virem, e ordenando: —“Traz Diadorim!”— conforme era. — “Gente, vamos
trazer; Esse é Reinaldo...” — o que o
Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. — Ai, Jesus! — foi o que eu ouvi, dessas
vozes deles.
Aquela
Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já
frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de
verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de
mesa foi posto. Diadorim, Diadorim — será que amereci só por metade? Com meus
molhados olhos não olhei bem — como que garças voavam... E que fossem campear
velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do
escuro do arraial...
Sufoquei,
numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e
vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces
de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia,
só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de
palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para
a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de
duráveis... Não escrevo, não falo! — para assim não ser: não foi, não é, não
fica sendo! Diadorim...
Eu
dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou
todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante
deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o
corpo. E disse...
Diadorim
— nu de tudo. E ela disse:
—
“A Deus dada. Pobrezinha...”
E
disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor — e mercê
peço: — mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto
segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era
o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a
surpresa. A coice d’arma, de coronha...
Ela
era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão
para me benzer — mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas
maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o
sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.
O
senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.
Eu
estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para
trás, incendiável, abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo
as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os
cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser,
haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu
exclamei me doendo:
—
“Meu amor!...”
Foi
assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.
A
Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da
trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com
o escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e
contas de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou — ah — a pedra-de-ametista, tanto trazida... O
Quipes veio, com as velas, que acendemos em quadral. Essas coisas se passavam
perto de mim. Como tinham ido abrir a cova, cristãmente. Pelo repugnar e
revoltar, primeiro eu quis: — “enterrem separado dos outros, num aliso de vereda,
adonde ninguém ache, nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar
do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos
extenso. E todos meus jagunços, decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura
deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.
Ela
tinha amor em mim.
E
aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que
narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui
a estória se acabou.
Aqui,
a estória acabada.
Aqui
a estória acaba.
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª
edição. 1956.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
MACHADO
Por
via das coisas e das pessoas, dissociadas no espaço e no tempo em partículas
plurais, na vontade de viver de cada um, pulsa uma força universal, captada num
salto metafísico, por obra do sentimento. Para o engano da mascarada do mundo,
a criatura supõe perseguir fins, conscientemente autônomos. No fundo, os fins
são apenas instrumentos de sua substância que tudo domina, retalhos da vontade
que arde na garra do tigre ou na lascívia do homem. A lógica, a ciência, são
armadilhas que desviam, sem vencer, da verdade que está em tudo e em todos.
Essa metafísica poderia concluir na harmonia do contingente com a ordem
superior, na paz com a vida ou na reconciliação com o universo. No dualismo
aparente, que culmina no monismo essencial, entre um componente trágico, no
momento em que a substância se expressa na vontade, que abriga no seio a cisão,
a luta, o anelo insaciável. “Com isso introduziu-se no ponto radical unitário
da vida — cuja unidade, só pelo fato de ser unidade, concederia em outro caso à
existência e a seu reflexo espiritual a tranqüilidade suprema e a quietude —, a
luta pela existência e o fugir dela, a ânsia perpétua sem fim nem objeto, a
cisão irreconciliável entre todo presente
e o que nós propriamente queremos. A forma com que todo monismo confere
quietude, firmeza e paz à sua concepção
do mundo transforma-se aqui, em razão de seu conteúdo, no seu contrário, na
ânsia e inquietude perenes e na contradição interior”. Daí porque a natureza,
tradução machadiana, da vontade de Schopenhauer, é mãe e inimiga. Como mãe ela
atrai e seduz, convida e arrasta; como inimiga, por influxo da razão, atemoriza
o Brás Cubas moribundo e o Bentinho enamorado. A natureza, na ênfase do
romancista, como a doutrina do filósofo alemão, se manifesta no fenômeno e na
realização da vontade de viver. Mas a natureza vela pelo indivíduo enquanto ele
realiza sua missão, que é perpetuar a espécie, só esta eterna, superior ao
espaço e ao tempo. A morte — tema freqüente de Machado de Assis, que vê na imortalidade
apenas feitiçaria e a perpetuação do nome (lembre-se o emplastro de Brás Cubas)
— não passa de um acidente, que só a razão não entende. Recusar-se a ela seria
como se o sol se pusesse a bradar, diante da tarde: vou perder-me na noite
eterna. Ao cessar a vida orgânica, o sopro que provoca a respiração e o sangue
que circula — a força inspiradora continua a arder, “pois a roca, ao parar, não
denuncia a morte da fiandeira. Quando um pêndulo, encontrando a força de
gravidade, se imobiliza, perdendo a aparência da vida individual, ninguém
haveria de crer que a força de gravidade desapareceu senão que todos a
compreenderão na contínua atividade dos fenômenos.” “Se nossa mãe comum —
prossegue Schopenhauer — entrega seus filhos, indefesos, aos mil perigos que os
cercam, é porque sabe perfeitamente que eles volverão ao seu seio, onde se
encontram ao abrigo de todos os riscos, sendo a queda somente um incidente sem
importância.” Assim é para o homem e para o animal, para a árvore e para a
pedra, matéria que alimenta a mó da vida, impiedosamente ativa na sua
permanência. Todos os elementos — do homem ao pó — são irmãos, mas irmãos que
se digladiam, combatem, ocupam um lugar que, eterno, tem ocupantes sucessivos,
conquistado na luta.
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis:
A
Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro.
3ª
edição. 1988.
OS NOVOS INCONFIDENTES
Maria
Dilma de Baére
Maria
do Carmo Araújo de Barros Lima
Maria
Helena Trench Villas Boas
Maria
Heloísa Villas Boas
Maria
José de Oliveira
Maria
Laura Mouzinho Leite Lopes
Maria
Luiza de Almeida
Maria
Nilde Mascellani
Maria
Thereza Gomes de Oliveira
Maria
Yedda Leite Linhares
Marina
São Paulo de Vasconcellos
Marinho Abrahão da Gama
Mário
Alves Dias
Mário
Antônio Barata
Mário
Batista da Silva
Mário
Coelho Dias
Mário
Coelho Filho
Mário
da Graça Roiter
Mário
de Almeida
Mário
Gonçalves Neves
Mário
Guido
Mário
Guilhermelli Scangarelli
Mário
Ivo Beheregaray Fittipaldi
Mário
Maia
Mário
Piva
Mário
Ribeiro da Silveira
Mário
Schenberg
Mário
Silveira
Mariza
Coutinho
Martiniano
Pereira da Silva
Massao
Goto
Maurício
Vieira Portugal
Maurílio
Cândido Ferreira
Maurílio
Filgueira Ferreira Lima
Mauro
Pugliese Branco Maximiano e Silva
Mayte
Ferreira da Silva
Michel
Fernand Etienne Gueriot
Michel
Salim Saad
Miguel
Antunes Carneiro
Miguel
Costa Júnior
Miguel
Dumas
Miguel
Florêncio da Hora
Miguel
Leuzi
Miguel
Marques Evangelista
Miguel
Pan
terça-feira, 25 de dezembro de 2012
OS INCONFIDENTES
CARTA
DO PADRE JOSÉ S. O. ROLIM: TEJUCO, 20-04-1789
Senhor
Domingos de Abreu Vieira
Meu
prezado amigo do coração. Recebi a última de Vossa Mercê de dois de abril, em
que me certifica ter falado ao nosso Mecenas segunda e terceira vez; ele,
eficaz e certo no que nos prometeu, assim me devo persuadir como homem de bem;
e fico esperando a resolução da parte que levou o meu próprio, para de todo
viver em paz, para o nosso amigo Brandão. Eu tenho observado tanto à risca, que
ainda té o dia de hoje não saí à rua a
pagar visitas; nem o pretendo fazer sem a resolução que vier, pois não é
do meu gênio, nem me está bem aparecer e tornar a esconder-me; eu, confiado na
promessa que a Vossa Mercê lhe asseveraram, vivo certificado que tal me não
acontecerá; e espero que de Vossa Mercê, pelas suas diligências, me venha o meu
sossego.
Este
é o condutor do ouro; leva um caixão com doce de mangabas secas que me fará
mercê oferecê-lo ao Senhor Gonzaga em meu nome. Amanhã, terça-feira, que se
contam 21, saem daqui os dois negros com quatro bestas para a condução de Vossa
Mercê; e os deixará estar inté que Vossa Mercê venha; e tenha satisfação para a
sua jornada muito à sua vontade; e quando cá chegar, reformará de outras que
estarão descansadas à sua espera. Faça-me recomendado a nosso bom amigo Afonso
Dias e todos os mais amigos que Vossa Mercê bem os conhece: ao senhor Bernardo,
e ao Bento Pereira, e todos os da sua família. Sirva-se da minha vontade que
pronta fica para o que for de lhe dar gosto. Deus guarde a Vossa Mercê por
muitos anos. Tejuco, 20 de abril de 1789.
De
Vossa Mercê
Amigo
de coração e obrigadíssimo
José
da Silva
segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
EMANUEL E FEDERICO
Por
que os trouxera? Talvez na ocasião tivesse imaginado que a Samarra ia ser seu
esteio de pouso, termo de destino. E ele mesmo, nas entradas, se louvou de ter
conseguido reunir para si aquela família de tardezinha. Estivesse, naquela
hora, denunciando cabeceira de velhice? Não pensava. Nem agora chegava a mudar
de parecer. do que tinha feito não se arrependia. Essas coisas ocorrem nuns
escuros, é custoso se saber se a gente deve se aprovar ou confessar um
arrependimento: nos caroços daquele angu, tudo tão misturado, o ruim e o bom.
Mas ele não punha em pé o pesar. Estavam de bem, só que , em qualquer novidade,
nesta vida, se carece de esperar o costume, para o homem e para o boi.
Manuelzão era o das forças, não se queixava. Os meninos, bem-criadinhos,
bonitos, uma cisma achar que dele não gostavam, pois que sempre estava no
estatuto de ser o avô. A mal que não sabia os gestos, nem tinha habituação para
a pequenez deles, o rebuliço; mas adiava vagos intentos: aqueles netinhos ainda
iam crescer, dar-lhe distintas alegrias. Já o Adelço, esse, se encobria de não
se conhecer sua propensão, criatura de guardadas palavras e olhares baixos. Mas
não enganava a Manuelzão: era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando
para ser ruim. Só punha toda estima em sua mulher e nos filhinhos, das outras
pessoas tinha uma raiva surdada. Sempre aquela miúda dureza, sem teta de
piedade nenhuma. Por ora, obedecia a Manuelzão — de que outro jeito ia poder
proceder? as obedecia soturno. Um dia
ele chegasse a mandar, e ai do mundo. Tinha a maldade dum cão mau? Manuelzão se
aborrecia, por fora do assunto. Não queria detestar o filho. Seria, porém,
aquele, um saído de seu sangue? Se assustava quase, de ter gerado e estar
apurando um sujeito assim, desamigo de todos. Sua culpa. Se então, mais
valesse o rejeitar outra vez e enxotar
para os passados — feito a gente está pescando e dá na peneira uma serepente:
um cospe um nojo e desiste logo aquilo no movimento das águas, ligeiro, no rio,
de donde veio! A vida cobra tudo. Mas a mulher do Adelço, Leonísia, era boa,
uma sinhá de exata, só senhora. Aquela tinha sial de um sabido anjo-da-guarda —
pelo convívio que ela encorajava, gerência de companhia. Ela e seu irmão dela,
de uns dezoito anos, vindo também, o Promitivo. Só que esse Promitivo era
declarado em vagabundo. A ser, os desiguais: que o Adelço era mouro
trabalhador, de aferro; era, isso. E, Leonísia, Manuelzão mesmo respeitava. Ela
ficara sendo a dona-da-casa. Da Casa — de verdade, que ali formava seu conchego
firme sertanejo.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile. 1º
volume. José Olympio.
Rio
de Janeiro, RJ. 1ª
edição. 1956.
domingo, 23 de dezembro de 2012
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
Então
disse Jesus aos seus discípulos: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si
mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, a
perderá, mas o que perder sua vida por causa de mim, a encontrará. De fato, que
aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro mas
arruinar sua vida? Ou que poderá o homem dar em troca de sua vida?
Pois
o Filho do Homem há de vir na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então
retribuirá a cada um de acordo com o seu comportamento. Em verdade vos digo que
alguns dos que aqui estão não provarão a morte até que vejam o Filho do Homem
vindo em seu Reino.”
Mt
16, 24-28
sábado, 22 de dezembro de 2012
A BÍBLIA SAGRADA
Antes
que viesse o ano da fome nasceram a José dois filhos que lhe deu Asenet, filha
de Putifar, sacerdote de On. José deu ao mais velho o nome de Manassés, “pois”,
disse ele, “Deus me fez esquecer meus trabalhos e toda a família de meu pai.”
Quanto ao segundo ele o chamou de Efraim, “porque,” disse ele, “Deus me tornou
fecundo na terra de minha infelicidade.”
Chegaram
ao fim os sete anos de abundância que houve na terra do Egito e começaram a vir
os sete anos de fome, como predissera José. Havia fome em todas as terras, mas
havia pão em todas as regiões do Egito. Depois, toda a terra do Egito sofreu
fome e o povo, com grandes gritos, pediu pão ao Faraó, mas o Faraó disse a
todos os egípcios: “Ide a José e fazei o que ele vos disser.” A fome assolava
toda a terra. — Então José abriu todos os armazéns de trigo e vendeu mantimento
aos egípcios. Agravou-se ainda mais a fome na terra do Egito. De toda a terra
se veio ao Egito para comprar mantimento com José, pois a fome se agravou por
toda a terra.
Gn
41, 50-57
sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
CARACTERÍSTICAS
GERAIS DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL: FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE AGRÁRIA,
ESCRAVOCRATA E HÍBRIDA
Quando
em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi
depois de um século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de
demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical. Mudado em
São Vicente e em Pernambuco o rumo da colonização portuguesa do fácil,
mercantil, para o agrícola; organizada a sociedade sobre base mais sólida e em
condições mais estáveis que na Índia ou nas feitorias africanas, no Brasil é
que se realizaria a prova definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as
condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por
meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim
à cultura econômica e social do invasor.
Formou-se
na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica
de exploração econômica, híbrida de índio — e mais tarde de negro — na
composição. Sociedade que se desenvolveria
defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português
cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em
sistema de profilaxia social e política.
Menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular. Mas tudo
isso subordinado ao espírito político e de realismo econômico e jurídico que
aqui, como em Portugal, foi desde o primeiro século elemento decisivo de
formação nacional; sendo que entre nós através das grandes famílias
proprietárias e autônomas: senhores de engenho com altar e capelão dentro de
casa e índios de arco e flecha ou negros armados de arcabuzes às suas ordens;
donos de terras e de escravos que dos
senados de Câmara falaram sempre grosso aos representantes d’el-Rei e pela voz
liberal dos filhos padres ou doutores clamaram contra toda espécie de abusos da
Metrópole e da própria Madre Igreja. Bem diversos dos criollos ricos e dos bacharéis letrados da América Espanhola — por
longo tempo inermes à sombra dominadora das catedrais e dos palácios dos
vice-reis, ou constituídos em cabildos que
em geral só faziam servir de mangação aos reinóis todo-poderosos.
A
singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata
dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes,
cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem africana fervendo
sob a européia e dando um acre requeime
à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por
uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje
de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas
instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a
rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao
Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica , à disciplina canônica, ao
direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas
sem governar; governando antes a África.
Corrigindo
até certo ponto tão grande influência do clima amolecedor, atuaram sobre o
caráter português, entesando-o, as condições sempre tensas e vibráteis de
contato humano entre a Europa e a África; o constante estado de guerra (que
entretanto não excluiu nunca a miscigenação nem a atração sexual entre as duas
raças, muito menos o intercurso entre as duas culturas; a atividade guerreira,
que se compensava do intenso esforço militar relaxando-se, após a vitória,
sobre o trabalho agrícola e industrial dos cativos de guerra, sobre a
escravidão ou a semi-escravidão dos vencidos. Hegemonias e subserviências essas
que não se perpetuavam; revezavam-se tal
como no incidente dos sinos de Santiago de Compostela. Os quais teriam sido
mandados levar pelos mouros à mesquita de Córdoba às costas dos cristãos e por
estes, séculos mais tarde, mandados reconduzir à Galiza, às costas dos mouros.
Quanto
ao fundo considerado autóctone de população tão movediça, uma persistente massa
de dólicos morenos, cuja cor a África árabe e mesmo negra, alagando de gente
sua largos trechos da Península, mais de uma vez veio avivar de pardo ou de
preto. Era como se os sentisse intimamente seus por afinidades remotas apenas
empalidecidas; e não os quisesse desvanecidos sob as camadas sobrepostas de
nórdicos nem de celtas, germanos, romanos, normandos — o anglo-escandinavo, o
H. Europaeus L., o feudalismo, o
Cristianismo, o Direito Romano, a monogamia. Que tudo isso sofreu restrição ou
refração num Portugal influenciado pela África, condicionado pelo clima
africano, solapado pela mística pela mística sensual do Islamismo.
“Em
vão se procuraria um tipo físico unificado”, notava há anos em Portugal o conde
Hermann de Keyserling. O que ele observou foram elementos os mais diversos e
mais opostos, “figuras com ar escandinavo e negróides”, vivendo no que lhe
pareceu “união profunda”. “A raça não tem aqui papel decisivo”, concluiu o
arguto observador. E já da sociedade moçárabe escrevera Alexandre Herculano:
“População indecisa no meio dos dois bandos contendores [nazarenos e
maometanos], meia cristã, meia sarracena e que em ambos contava parentes,
amigos, simpatias de crenças ou de costumes.”
Esse
retrato do Portugal histórico, traçado por Herculano, talvez possa estender-se
o pré e pró-histórico; o qual nos vai sendo revelado pela Arqueologia e pela
Antropologia tão dúbio e indeciso quanto o histórico. Antes dos árabes e
berberes: capsienses, libifenícios, elementos africanos mais remotos. O H. Taganus. Ondas semitas e negras, ou
negróides, batendo-se com as do Norte.
Gilberto
Freyre
Casa-Grande
& Senzala
Formação
da Família Brasileira
Sob
o Regime da Economia Patriarcal
Intérpretes
do Brasil. Coorden. seleção e prefácio
de
Silviano Santiago
Nova
Aguilar. Rio de Janeiro, RJ. 2002.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
DE DIANTE PRA TRÁS
Resoluto
saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti o dinheiro, que tinha,
retirei o cinturão-cartucheiras — aí ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus
para todos, sempremente. Ao que eu ia levar comigo era só o menino, o cego, e
os dos catrumanos vivos sobrados: esses eu carecia de repor de volta, na terra
deles, nos lugares. E, a Mulher, também dela me despedi, há-de ver que
esturdiamente, sem continuação de continuação. Ainda encomendei a João Curiol,
que era um baiano bom, na palavra e no caráter, que providenciasse o retorno
daquela, para onde quisesse ir outra vez.
Desapoderei.
Aonde
ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar só: às Veredas Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo revendo,
refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha tido, repor Diadorim em
vida? O que eu pensei, o pobre de mim. Eu queria me abraçar com uma
serrania?Mas, nessa parte, de muito mal me lembro, pelo revés em minha saúde.
Ao qie eu ia. de repente, me vinha um assombramento de espírito, muita vez
tonteei, de ter de me segurar, de cair; e, depois, durante muitos espaços, eu
restava esquecido de tudo, de quem eu era, de meu nome. Mas o Alaripe,
Pacamã-de-Presas, o Quipes, o Triol, Jesualdo, o Acauã, João Concliz, e o
Paspe, me cuidavam; esses tinham, por toda a lei, forçado de me acompanharem,
vinham comigo; e o Fafafa, ,aos João Nonato e Compadre Ciril, que vieram
depois. Amigos meus. Aí eu vinha.
Chapadão.
Morreu o mar, que foi.
Eu
vim. Pelejei. Ao deusdar. Como é que eu sabia destornar contra a minha tristeza?
O dito, vim, consoante traçado. Num lugar, o Tuim, me alembro: eu tive de mudar
para outro cavalo. E um sitiante, no Lambe-Mel, explicou — que o trecho, dos
marimbus, aonde íamos, se chamava mais certo não era Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas... Coisa que o compadre meu
Quelemém mais tarde me confiou. Daí, mais para adiante, dei para tremer com uma
febre. Terçã. Mas o sentido do tempo o senhor entende, resenha duma viagem.
Cantar que o senhor fosse. De ai, de mim. Namorei uma palmeira, na quadra do entardecer...
Na
morna, baqueei, não podendo mais. Me levaram, por primeiro, de revexo. Depois
me botaram para dentro duma casa muito pobre. Desembestei doente. Por último,
como perdi meu conhecimento, estavam me deitando num catrei.
Que
foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas sezão forte especial — nas
altíssimas! Que a febre que eu tinha era tamanha tanta, como nunca se viu — o Alaripe depois me disse —; que no
decorrer dos acessos eu tresvariava. Do que, no ouvir contado, recordei a
estória dum fazendeiro, o mais maldoso, que o demônio por fim salteou, por suas
ruindades: e que, endemoninhado, no quarto de sua casa, uivando lobum,
suplicava alívio do calorão, e carecia mesmo que os escravos despejassem nele
latas e baldes d’água, ao constantemente, até para evitar que, de tudo
devorante tão quente, não viesse e desse de pegar fogo no cômodo, de
incêndios... Doidice. Em dansa de demônios, que nem não existem. Pois, então,
só a doença não bastasse? O tempo que fiquei, deslembrado, detido. O quanto
foi? Mas, quando dei acordo de mim, sarando e conferindo o juízo, a luz sem
sol, mire e veja, meu senhor, que eu não estava mais no asilo daquela casinha
pobre, mas em outra, numa grande fazenda, para onde sem eu saber tinham me
levado.
Eu
estava na Barbaranha, no Pé-da-Pedra, hóspede de seo Josafá Ornelas. Tomei
caldo-de-galinha, deitado em lençóis alvos, recostado. E já parava meio longe
aquele pesar, que me quebrantava. Lembro de todos, do dia, da hora. A primeira
coisa que eu queria ver, e que me deu prazer, foi a marca dos tempos, numa
folhinha de parede. Sosseguei de meu ser. Era feito eu mee esperasse debaixo de
uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a alguma coisa, faltava em mim. Eu
estava um saco cheio de pedras. as aquele seo Ornelas era homem de muita
bondade, muita honra. Ele me tratou com categoria, fui príncipe naquela casa.
Todos — a senhora dele, as filhas, as parentas — me cuidavam. Mas o que
mormente me, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como
talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso,
para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da jagunçagem. Fui indo
melhor.
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª edição. 1956.
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
PEQUENO
MADRIGAL: A ROSA
a
rosa intacta,
suspensa
no ar,
que
fora jogaram,
com
amor eu colhi
e
em verde fundo
e
azul profundo
(carinho
e ternura)
com
amor a guardei
hoje
esta rosa,
que
um dia colhi,
(tão
verde, tão funda,
azul
e profunda)
em
meus olhos sorri:
tenho
alegria de amar!
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
OTELO E SANT'IAGO
ACEITO
A TEORIA
Que
é demasiada metafísica para um só tenor, não há duvida; mas a perda da voz
explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.
Eu,
leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela
verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se
casa bem à definição. Cantei um duo
terníssimo, depois um trio, depois um
quatuor... Mas não adiantemos , vamos
à primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de
José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me
denunciou.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro
HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA
Sob
qualquer ponto de vista em que a observássemos, a Amazônia tinha sido até então
“uma grande vítima de suas próprias grandezas”; depois do darwinismo implacável
de Euclides da Cunha e do realismo dramático de seu discípulo Alberto Rangel
(que ele reconhecia e louvava) — superados, idealmente, um e outro, pela
mitologia compensatória de Cobra Norato
— Alfredo Ladislau retomava o ufanismo suspicaz e inquieto com que
tradicionalmente “defendemos” a Amazônia e todas as nossas “riquezas naturais”.
Ele foi visto desde logo como um discípulo de Euclides da Cunha, cuja
influência, no caso, é de fato inegável. Quem o sagrava cavaleiro dessa falange
era ninguém menos que Alberto Rangel, em carta a Fraga de Castro: “A alma
brasileira encontra, depois de Euclides, nas mesmas cordas da Amazônia , o
grande tangedor da infinita sabedoria (...)”. O Pe. Dubois, na Folha do Norte, não era menos entusiástico:
Tem de Euclides da Cunha a pompa da linguagem, os vocábulos grandíloquos, a
tecnologia sábia, o rebuscamento no frasear. Brilhante e variado escrínio de
pedrarias.” Não ficava atrás o jornalista Carijó Cerejo, em O Brasil: “Comparável simultaneamente a
Euclides da Cunha e Graça Aranha, possuindo de um o vigor da análise e a
estilística soberba , e do outro, a suavidade e o enlevo panteísta.” A nota
discordante vinha, por inesperado, da revista neo-simbolista Terra de Sol, já no segundo número, em fevereiro
de 1924 (lembremos que o livro tinha sido originalmente publicado em 1923):
“Herdou de Euclides a excessiva pujança da expressão e certo preciosismo de
vocabulário que, espontâneos e característicos no épico de Os Sertões, se justificam menos em seus continuadores.”
Tais
restrições, perfeitamente apropriadas em 1924, tornaram-se ainda mais oportunas
em 1933, quando a terceira edição de Terra
Imatura, esse livro mentalmente pré-modernista, coincidia com o
aparecimento de Casa Grande & Senzala,
livro por tantos aspectos antieuclidiano e, bem entendido e, bem entendido,
representativo, embora a contragosto, da ideologia modernista em matéria de
estudos brasileiros. Por singularidade, ele parecia mais próximo da Atlântida, não só pelo papel
eminente que reconheceu à “raça de
azeviche” nas fontes da civilização brasileira, mas, ainda, na concepção do
“tipo sintético” em que terminaria por se resolver a nossa equação racial.
Conforme
o título desde logo sugere, Gilberto Freire tomou duas chaves simultâneas para
a interpretação do Brasil, ou, mais especificamente, do que mais tarde
denominaria a nossa “sociedade patriarcal”: de um lado, as formas arquiteturais
como símbolo ou metáfora de status; por
outro lado, o papel catalítico representado pela escravidão. O livro se fundava
substancialmente na diferença entre raça e
cultura, distinção de fato essencial
e, àquela altura, praticamente desconhecida em nossa história social; além
disso, Gilberto Freire introduzia conceitos extremamente elucidativos, como o
de tempo social (paralelo ao tempo
cronológico) e o de espaço social, em
lugar do espaço geográfico.
Na
linha de “deseroicização” da historiografia, postulada e praticada por Oliveira
Viana, ele tomou a família como unidade básica na formação, desenvolvimento e
transformações da sociedade, família — e
é uma das contribuições mais características do pensamento gilbertiano —
estruturada pela forma patriarcal. Assim, a relação patriarcal da família
propriamente dita se projeta, em termos perfeitamente idênticos, nas relações
entre o senhor e o escravo — o que
significa que, no sistema brasileiro, o escravo, apesar das aparências ou das
exterioridades, era mais do que uma simples propriedade: ele pertencia à
família do senhor, sentia-se como tal e como tal era sentido. O escravo era um
prolongamento da família, ao mesmo título que os protegidos e agregados, sem
excluir o capelão; simbolizada no domínio rural, a família era uma
“propriedade” como o escravo e as terras, estes últimos sendo,
psicologicamente, a “família” do senhor.
Os
termos dessa equação se intercambiam de tal maneira que a sua inversão
recíproca torna o processo ainda mais claro: o senhor da. família é o pai do
escravo; a família é escrava do senhor, mas o escravo é a sua família. Claro,
essa estrutura só é válida para aquele espaço social do Nordeste em que
realmente alcançou pleno desenvolvimento; levantada desde logo contra a
generalização que o autor a princípio lhe quis atribuir, essa objeção é
procedente, não deve ser ignorada e foi, ao que parece, por ele mesmo
tacitamente admitida com o correr dos anos
Wilson
Martins
História
da Inteligência Brasileira
vol.
VII (1933-1960).
Cultrix.
Edusp. São Paulo, SP.
1ª
edição. 1979.
domingo, 16 de dezembro de 2012
sábado, 15 de dezembro de 2012
PANEM NOSTRUM
Depois
vi o sangue coagular-se em letras
espalhadas
nos muros e nas pedras;
e
o céu baixar-se para fecundá-las
e
fugir outra vez para esquecê-las.
Depois
vi o homem pressuroso em lê-las,
transformá-las
em signos e arabescos
em
palavras, em urros, em apelos
estranhas
oceanias e sonetos,
em
hálitos de bocas cavilosas,
entrecortando
sílabas amargas
engolidas
no prato das desgraças,
e
a gagueira ser tanta, tanto o fel
que
a grande torre de marfim preciosa
era
a torre danada de Babel.
Jorge
de Lima
Livro
de Sonetos
sexta-feira, 14 de dezembro de 2012
G. RAMOS
No
começo de 1936, funcionário na instrução pública de Alagoas, tive a notícia de
que misteriosos telefonemas, com veladas ameaças, me procuravam o endereço. Desprezei
as ameaças: ordinariamente o indivíduo que tenciona ofender outro, não o avisa.
Mas os telefonemas continuaram. Mandei responder que me achava na repartição
diariamente, das nove horas ao meio-dia, das duas às cinco da tarde. Não era o
que pretendiam. Nada de requerimentos: queriam visitar-me em casa. Pedi que não
me transmitissem mais essas tolices, com certeza picuinhas de algum inimigo
débil, e esqueci-as; nem um minuto supus que tivessem cunho oficial. Algum
tempo depois um amigo me procurou com a delicada tarefa de anunciar-me,
gastando elogios e panos mornos, que a minha permanência na administração se
tornara impossível. Não me surpreendi. Pelo meu cargo haviam passado em dois
anos oito sujeitos. Eu conseguira agüentar-me ali mais de três anos, e isto era
espantoso. Ocasionara descontentamentos, decerto cometera numerosos erros, não
tivera a habilidade necessária de prestar serviços a figurões, havia suprimido
nas escolas o hino de Alagoas, uma estupidez com solecismos, e isto se
considerava impatriótico. O aviso que me traziam era, pois, razoável, e até
devia confessar-me grato por me haverem conservado tanto tempo.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume – Viagens.
José
Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª
edição. 1953.
quinta-feira, 13 de dezembro de 2012
GR
Zé
Bebelo, prisioneiro, submetido a julgamento, arenga como guerreiro medieval:
“... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero
julgamento, esta bizarria... Agradeço sem temor de medo nenhum, nem agências de
adulação! Eu, José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô
meu Francisco Vizeu Antunes — foi capitão-de-cavalos... Demarco idade de
quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pacheco Antunes e
Maria Deolinda Rebelo; e nasci na bondosa vila mateira do Carmo da
Confusão...” (...) “Agradeço os que por
mim bem falaram e puniram... Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra
e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido, valente,
contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu exemplo, em
nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem-Bem, Sõ Candelário... e tantos
outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que não estão...” E mais
para o fim, usa o termo próprio, a expressão
medieval:
“Mas, homem sou, de altas cortesias”.
M.
Cavalcanti Proença
Trilhas
no Grande Sertão
Os
Cadernos de Cultura 114.
MEC.
Departamento de Imprensa Nacional
Rio
de Janeiro, RJ. 1958.
terça-feira, 11 de dezembro de 2012
MACHADO
1.
PANDORA —DO DEMONÍACO AO DIABÓLICO
Dentro
da vida, sobre a morte, além das pessoas e do seu pobre destino, há uma força
que comanda, que guia e que impera. Um adolescente, Bentinho, encarou-a,
sentiu-lhe a face quente, enquanto um moribundo, Brás Cubas, recolheu-lhe, nas
próprias entranhas, o hálito feito de gelo e de morte. Seus olhos são olhos de ressaca, o refluxo do mar que
leva para o desconhecido, na aventura em que os seres se perdem no ser único,
que uma onda devora e se renova em outra de sal e espuma. Contra sua inelutável
sedução, o adolescente e o moribundo se agarram às areias, à precária carne que
testemunha a presença do homem individualizado. “Olhos de ressaca? Vá, de
ressaca. É o que me dá idéia daquela força que arrasta para dentro, como a vaga
que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me
às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelo
ombro; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me , puxar-me e tragar-me (D.C.
XXXII). O namorado resiste e se debate, não quer perder a identidade, ameaçado
pelas vagas do eterno, que está em todas as coisas, e, entre as coisas, na sua
mais fiel e inconsciente servidora, a mulher, irmã da natureza. Na ressaca,
despida a retórica dos namorados,
debaixo da palavra frívola, aparentemente frívola, garatujada para enganar sem
embair, há atração que vem de dentro e de fora, do alto e da mesquinha condição
humana. Sempre a misteriosa atração, recheada de terror e de fascínio,
freqüenta a imaginação, desarticula a razão e liberta a fantasia. Ela apavora
Bentinho, mas, vestida de loucura, tenta o equilíbrio mental dee Rubião. Agora,
uma sombra, cultivada por Shakespeare, compõe pompas matrimoniais, coches, os
soberbos coches de outrora, evoca marquesas e embaixadores, rondando a cabeça
do modesto mestre-escola de Barbacena. “Que misterioso Próspero transformava
assim uma ilha banal em mascarado sublime? “Vai, Ariel, traze aqui os teus
companheiros, para que eu mostre a este jovem casal alguns feitiços da minha
feitiçaria.” As palavras seriam as mesmas da comédia; a ilha é que era outra, e
a ilha e a mascarada (Q.B. LXXXII). A ilha e a mascarada eram outras, como
outro era Próspero, não mais o duque de Milão, mas um vulto imenso, que surge
do fundo do abismo, decifrando o enigma da vida e devorando a criatura. Brás
Cubas, só ele entre tantos que lhe perceberam os passos abafados, o semblante
negro de cinzas e de fogo, viu-o de perto e com ele fez a viagem em redor do
mundo e dos séculos, no espaço e no tempo, à borda da vida e da morte,
acompanhado dos espectros do amor e da loucura. “Caiu do ar? destacou-se da
terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu
então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a
vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano,
porque os contornos perdiam-se no ambiente e o que parecia espesso era muita
vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito;
mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se
chamava: curiosidade de delírio.
“—
Chamo-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua . ...
“Não
te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se
afirma. Vives: não quero outro flagelo.
“Entendeste-me?
disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
“—
Não, respondi: nem quero entender-te: tu és absurda, tu, trazes esse rosto
indiferente, como o sepulcro. E por que é só mãe e não inimiga; não fazes da
vida um flagelo, nem como tu, trazes esse rosto indiferente, como o sepulcro. E
por que Pandora?
—
Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança,
consolação dos homens.
—
“Sim, o teu olhar fascina-me.
—
“Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a
devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do
nada” (M.P., VII).
Natureza,
Pandora, com a forma de mulher, mãe e inimiga, irmã da morte e da loucura,
feita de lascívia e egoísmo, ela cria e devora, ama e consome. Insaciável na
sua fome, no mar “espreguiça-se toda em convulsões estranhas”:
“Pois
esse criatura está com toda a obra:
Cresta-lhe
o seio de flor e corrompe-lhe o peito;
E
é nesse destruir que as forças dobra.
Ama
de igual o poluto e o impoluto;
Começa
e recomeça uma perpétua lida,
E
sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu
dirás que é a morte; eu direi que é a vida.
(P.C.,
Uma Criatura)
Raymundo
Faoro
Machado
de Assis:
A
Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro, RJ.
3ª
edição. 1988.
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