O
PORTO DE MINHA INFÂNCIA (FINAL)
Às
vezes a navegação ficava impossível durante meses, o que devia destrambelhar as
finanças da empresa. Houve algumas transferências de contratos, coisas
aborrecidas que não vou historiar. Uma publicação de 1920, do Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio, ainda dizia: “Durante as águas é grande o
número de embarcações a vapor, gasolina, vela e remos que auxiliam os
transportes entre Cachoeiro e Barra de Itapemirim numa distância de 42 km ...” Era mais do que
contava, em maus versos, em 1885, o padre Antunes Siqueira:
“...Nele
cruzam em fluvial carreira
Dois
vapores muito regularmente.
Vão
do Itapemirim a Caxoeira,
Quando
das águas lhes permite a enchente,
Dali
voltam em viagem prazenteira
Conduzindo
carga e muita gente.”
No
princípio deste século o vaporzinho São
Luís, de Soares & Irmão, era a principal ligação entre Cachoeiro e a
Barra. Vejo-o numa foto de 1922, e me lembra da única vez em que o vi
pessoalmente. Eu devia ter oito anos, e o achei fascinante. Um senhor com ares
superiores dizia que a viagem era muito perigosa; o barco podia encalhar ou
arrebentar-se. Uma vez ele bateu num galho em que havia uma casa de marimbondos
e estes atacaram os passageiros. De outra vez foi pior: quando o vaporzinho
passava sob uma árvore da margem esquerda, caiu nele uma cobra. “Venenosa?” ―
perguntou alguém. “Claro!” ― afirmou ele, como se considerasse indigno de sua
pessoa ter feito referência a uma cobra que não fosse venenosa. “E aí, o que
houve?” ― perguntou ainda outra pessoa. E ele com um ar irritado: ― “O que
houve, o que houve? Ora, cai uma cobra venenosa dentro de um barco, e você quer
saber o que houve, o que houve?”
Nesse
momento o vaporzinho apitou para partir, e nunca ficamos sabendo, afinal de
contas, o que houve.
Lembro-me
de que uma vez meu pai viajou no vaporzinho. Eu disse que queria ir, mas alguém
disse que quem iria era meu irmão mais velho, e eu teria de esperar a minha
vez. Era razoável. Mas o diabo é que ainda havia outros dois irmãos mais velhos
para ir antes de mim! Foi a essa altura que inventaram a estrada de ferro, que
depois arrancaram para substituir pela estrada de rodagem ― e adeus São Luís, adeus para sempre, vaporzinho São Luís das primeiras de minhas grandes
navegações que nunca houve.
Incendiou-se em 1988.
Rubem
Braga
As
Boas Coisas da Vida