sexta-feira, 24 de maio de 2013

ONDE CANTA O SABIÁ


O PORTO DE MINHA INFÂNCIA  (FINAL)

Às vezes a navegação ficava impossível durante meses, o que devia destrambelhar as finanças da empresa. Houve algumas transferências de contratos, coisas aborrecidas que não vou historiar. Uma publicação de 1920, do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, ainda dizia: “Durante as águas é grande o número de embarcações a vapor, gasolina, vela e remos que auxiliam os transportes entre Cachoeiro e Barra de Itapemirim numa distância de 42 km...” Era mais do que contava, em maus versos, em 1885, o padre Antunes Siqueira:

“...Nele cruzam em fluvial carreira
Dois vapores muito regularmente.
Vão do Itapemirim a Caxoeira,
Quando das águas lhes permite a enchente,
Dali voltam em viagem prazenteira
Conduzindo carga e muita gente.”

No princípio deste século o vaporzinho São Luís, de Soares & Irmão, era a principal ligação entre Cachoeiro e a Barra. Vejo-o numa foto de 1922, e me lembra da única vez em que o vi pessoalmente. Eu devia ter oito anos, e o achei fascinante. Um senhor com ares superiores dizia que a viagem era muito perigosa; o barco podia encalhar ou arrebentar-se. Uma vez ele bateu num galho em que havia uma casa de marimbondos e estes atacaram os passageiros. De outra vez foi pior: quando o vaporzinho passava sob uma árvore da margem esquerda, caiu nele uma cobra. “Venenosa?” ― perguntou alguém. “Claro!” ― afirmou ele, como se considerasse indigno de sua pessoa ter feito referência a uma cobra que não fosse venenosa. “E aí, o que houve?” ― perguntou ainda outra pessoa. E ele com um ar irritado: ― “O que houve, o que houve? Ora, cai uma cobra venenosa dentro de um barco, e você quer saber o que houve, o que houve?”

Nesse momento o vaporzinho apitou para partir, e nunca ficamos sabendo, afinal de contas, o que houve.

Lembro-me de que uma vez meu pai viajou no vaporzinho. Eu disse que queria ir, mas alguém disse que quem iria era meu irmão mais velho, e eu teria de esperar a minha vez. Era razoável. Mas o diabo é que ainda havia outros dois irmãos mais velhos para ir antes de mim! Foi a essa altura que inventaram a estrada de ferro, que depois arrancaram para substituir pela estrada de rodagem ― e adeus São Luís, adeus para sempre, vaporzinho São Luís das primeiras de minhas grandes navegações que nunca houve.

Incendiou-se em 1988.


Rubem Braga

As Boas Coisas da Vida