sábado, 4 de maio de 2013

GENTE MUITO APTA PARA O REINO-DO-CÉU



MOC   -   MINHA TERRA
  

Montes Claros, onde nasci, que nós, os de lá, gostamos de chamar carinhosamente de Moc, fica no Norte de Minas. Por muito tempo esteve mais ligada à Bahia, daí que minha gente fale com sotaque baiano, dizendo dezoitxo, ou muitxo, e exiba uma alegria cantante que não é qualidade mineira.

Moc só se ligou ao Sul pela estrada de ferro que la chegou em 1924, levada por Francisco Sá, poderoso ministro da Viação de Artur Bernardes. Como ponta de linha, por muitas décadas se tornou um empório de comércio regional, estação de embarque de gado gordo para os matadouros e de mineiros magros para serem baianos em São Paulo. Como eu.

Converteu-se, também, por virtude do comércio concentrador de gentes, no maior puteiro de Minas. Célebre por suas putas lindas e prendadas, como Maria da Chupeta, que todo mundo gabava. E a saborosa Manga Rosa, gordíssima e branquíssima, que por essas qualidades nos encantava.

Montes Claros de eu menino se orgulhava de ter mais de 20 mil habitantes. Cresceu tanto que supera agora os 200 mil. Coitada. Daqueles vinte, um quarto vive no casco da cidade. O restante nos arredores: Roxo Verde, Cintra e outros. A cidade antiga expandiu-se tanto que esgarçou. Não sobrou nenhum dos prédios mais velhos. Apenas uns sobradões e a catedral velha lembram a antiga grandeza.

Quando vou lá fecho os olhos da cara e abro os da memória para ver minha cidade tal qual era. Montes Claros só existe de fato dentro de mim, como coisa pensada. No meu tempo, era um casario baixo, caiado, sobre ruas empedradas em pé-de-moleque que só se prestavam bem a pés descalços. Os elegantes, por dever social, andavam calçados, se equilibrando. As mulheres cambaleavam em sapatos altos. Uma acrobacia. Mas era tudo plano, tanto que nós, meninos, gostávamos de correr pelo rego da rua com os olhos no céu para ter a ilusão de que a Lua é que corria. Lindo.

A cidade era uma ilha de verdor pela quantidade enorme de árvores frondosíssimas dos quintais: mangueiras, jaqueiras, pitombeiras, jatobazeiros, cajueiros, birosqueiras e muitas mais. Desapareceram em loteamentos dos terreiros para edificar novas casas e depois, com a abertura de garagens. Lembro-me de umas quantas árvores, enormíssimas, que conheci pessoalmente, inclusive três palmeiras imperiais e um solitário eucalipto. Todas se foram.

O que transitava nas ruas eram tropas de burros, às vezes vindas de muito longe com seus “cometas” lusitanos, que traziam mercadorias para o comércio e procuravam noivas ricas em terras e bens. Dois deles se casaram em minha família, entre os Ribeiro, naturalmente.

Rodavam também, nas ruas, rangentes, grandes carros de bois puxados às vezes por três ou quatro juntas. Carregavam lenha para vender nas casas e porcos gordos que vinham das fazendas por encomenda. Dizia-se que o melhor negócio do mundo era safra de milho ensacada em porcos.

Minha família comprava um por mês. Sua chegada era dia de festa. Para sangrar, ouvindo sua berraria, aparando o sangue e depois carneando. Para tirar as tripas, que nós meninos levávamos para o fundo do quintal para esvaziar e lavar. Era um gozo meter a mão naquela merda gorda que jogávamos uns nos outros. A alegria maior era das galinhas, que se assanhavam e vinham enfeixadas como doidas querendo comer aquele pitéu. Para carnear retirando e salgando quase inteiro o toucinho com o couro. Para juntar a banha, escaldá-la, a fim de preservar pedações de carne frita botados dentro. Para passar a tarde enchendo braçadas de lingüiça com carne cortada aos pedacinhos e bem temperada com sal, pimenta e muitos cheiros. Uma alegria.

Minha casa, dos Silveira, tinha jardinzinhos laterais de flores e temperos e, passando um portão, uma quantidade de árvores enormes. Boas para subir, pular, brincar de Tarzã e cair. E às vezes machucar. A casa tinha uma parte nobre com assoalho de largas tábuas laváveis, onde ficavam a sala de receber visitas, sempre muito arrumada, o cartório de meu avô, aberto em quatro portas para a rua, e os quartos mais nobres, com um quartão de tomar banho em grandes bacias.


Darcy Ribeiro
Confissões
ilustrações de Oscar Niemeyer
Companhia das Letras. São Paulo.
1997.