MOC -
MINHA TERRA
Montes
Claros, onde nasci, que nós, os de lá, gostamos de chamar carinhosamente de
Moc, fica no Norte de Minas. Por muito tempo esteve mais ligada à Bahia, daí
que minha gente fale com sotaque baiano, dizendo dezoitxo, ou muitxo, e
exiba uma alegria cantante que não é qualidade mineira.
Moc
só se ligou ao Sul pela estrada de ferro que la chegou em 1924, levada por
Francisco Sá, poderoso ministro da Viação de Artur Bernardes. Como ponta de
linha, por muitas décadas se tornou um empório de comércio regional, estação de
embarque de gado gordo para os matadouros e de mineiros magros para serem
baianos em São Paulo. Como eu.
Converteu-se,
também, por virtude do comércio concentrador de gentes, no maior puteiro de
Minas. Célebre por suas putas lindas e prendadas, como Maria da Chupeta, que
todo mundo gabava. E a saborosa Manga Rosa, gordíssima e branquíssima, que por
essas qualidades nos encantava.
Montes
Claros de eu menino se orgulhava de ter mais de 20 mil habitantes. Cresceu
tanto que supera agora os 200 mil. Coitada. Daqueles vinte, um quarto vive no
casco da cidade. O restante nos arredores: Roxo Verde, Cintra e outros. A
cidade antiga expandiu-se tanto que esgarçou. Não sobrou nenhum dos prédios
mais velhos. Apenas uns sobradões e a catedral velha lembram a antiga grandeza.
Quando
vou lá fecho os olhos da cara e abro os da memória para ver minha cidade tal
qual era. Montes Claros só existe de fato dentro de mim, como coisa pensada. No
meu tempo, era um casario baixo, caiado, sobre ruas empedradas em pé-de-moleque
que só se prestavam bem a pés descalços. Os elegantes, por dever social,
andavam calçados, se equilibrando. As mulheres cambaleavam em sapatos altos.
Uma acrobacia. Mas era tudo plano, tanto que nós, meninos, gostávamos de correr
pelo rego da rua com os olhos no céu para ter a ilusão de que a Lua é que
corria. Lindo.
A
cidade era uma ilha de verdor pela quantidade enorme de árvores frondosíssimas
dos quintais: mangueiras, jaqueiras, pitombeiras, jatobazeiros, cajueiros,
birosqueiras e muitas mais. Desapareceram em loteamentos dos terreiros para edificar
novas casas e depois, com a abertura de garagens. Lembro-me de umas quantas
árvores, enormíssimas, que conheci pessoalmente, inclusive três palmeiras
imperiais e um solitário eucalipto. Todas se foram.
O
que transitava nas ruas eram tropas de burros, às vezes vindas de muito longe
com seus “cometas” lusitanos, que traziam mercadorias para o comércio e
procuravam noivas ricas em terras e bens. Dois deles se casaram em minha
família, entre os Ribeiro, naturalmente.
Rodavam
também, nas ruas, rangentes, grandes carros de bois puxados às vezes por três
ou quatro juntas. Carregavam lenha para vender nas casas e porcos gordos que
vinham das fazendas por encomenda. Dizia-se que o melhor negócio do mundo era
safra de milho ensacada em porcos.
Minha
família comprava um por mês. Sua chegada era dia de festa. Para sangrar,
ouvindo sua berraria, aparando o sangue e depois carneando. Para tirar as
tripas, que nós meninos levávamos para o fundo do quintal para esvaziar e
lavar. Era um gozo meter a mão naquela merda gorda que jogávamos uns nos
outros. A alegria maior era das galinhas, que se assanhavam e vinham enfeixadas
como doidas querendo comer aquele pitéu. Para carnear retirando e salgando
quase inteiro o toucinho com o couro. Para juntar a banha, escaldá-la, a fim de
preservar pedações de carne frita botados dentro. Para passar a tarde enchendo
braçadas de lingüiça com carne cortada aos pedacinhos e bem temperada com sal,
pimenta e muitos cheiros. Uma alegria.
Minha
casa, dos Silveira, tinha jardinzinhos laterais de flores e temperos e,
passando um portão, uma quantidade de árvores enormes. Boas para subir, pular,
brincar de Tarzã e cair. E às vezes machucar. A casa tinha uma parte nobre com
assoalho de largas tábuas laváveis, onde ficavam a sala de receber visitas,
sempre muito arrumada, o cartório de meu avô, aberto em quatro portas para a
rua, e os quartos mais nobres, com um quartão de tomar banho em grandes bacias.
Darcy
Ribeiro
Confissões
ilustrações
de Oscar Niemeyer
Companhia
das Letras. São Paulo.
1997.