sábado, 11 de maio de 2013

MACHADO



Para ser mais preciso: o culto se reduz a um hábito vazio, ao convívio sem conteúdo, na forma sem energia, porque não o anima o ato religioso. Não há religião sem o culto, nem religião sem interioridade. O culto não é o acidente, o ornamento da fé, da exigência ética, senão que expressa a dependência necessária do sentimento que incorpora a divindade na consciência. Os dois lados do mesmo ato não nascem da ética ou da metafísica, do raciocínio ou da crença cega, senão que refletem um específico movimento da alma, inconfundível com todas as outras manifestações do homem. Todo o conhecimento de Deus é um conhecimento através de Deus, fundado na transcendência mundana da sua intenção, na realização por meio do divino e na apreensão ao que se revela do alto. A esfera do divino é original e não derivada; não necessita de prova ― o que se formam são os conceitos sobre o real, não a própria realidade. O que se prova é o que já se encontrou. O ato religioso se aperfeiçoa no ser que lhe responde, ou na possibilidade desse alvo, procurando pelo gesto e pelo impulso íntimo. Fora daí, não há a vocação religiosa, senão vestígios religiosos ou a pseudo-religião. Cinzas de um incêndio extinto há em toda parte, em todas as consciências; os desvios acompanham todos os caminhos. A labareda que arde, a estrada real são, todavia , coisas diversas, e só estas falam da divindade pessoal, diretamente, ou por seu intermediário, o que subiu o Gólgota.

No itinerário de Machado de Assis, concretamente depois da fogueira das ilusões de 1880, na crise dos quarenta anos, não há mais Deus. Do demonismo ao diabolismo, no passeio humorístico, crestam-se as últimas folhas da dependência da criatura. Mais: o escritor supõe que o ato religioso não é mais possível, restando, no capítulo das negativas, o espírito que apenas nega. Por um instante, ainda haverá dois céus, o que as nuvens encobrem, e o que recebe as orações (Dom Casmurro XX), mas o segundo já não passa de alegoria, fuga da consciência ardilosa. Uma tentativa dialética, por via da carambola lógica, poderia ver no diabolismo o reflexo do seu contrário. O Diabo, evocado humoristicamente, sugeria Deus, reverenciado com seriedade. No jogo das conjeturas, o contrário da negação pode ser outra negação, e não uma afirmação, como o contrário da mentira não será a verdade, senão provavelmente outra mentira. Na cidade erma de Deus, opaca ao sentimento religioso, o Diabo prega o seu sermão, desdobramento lógico de sua visão da terra, prometendo copioso galardão aos que se mantêm agarrados ao mundo fiéis ao pecado que o incendeia. “13º Ouviste que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros, melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito mais nutritivo que o próprio.  14º Também foi dito aos homens: Não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa. 15º Assim, se estiveres fazendo tuas contas, e te lembrares que teu irmão anda meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo” (P. R., O Sermão do Diabo). O mundo se estreita na caça do dinheiro, o cristão se anula no burguês, na imensa paisagem desolada e perdida do Diabo. Mas, nem tudo é permitido: mortos os mandamentos, ainda vigoram as convenções e a polícia, que vigiam as ruas, os bancos, as assembléias de acionistas. Certo, há a consciência que rói surdamente, mas o brilho do vil metal a pacifica, como outrora a prece.


Raymundo Faoro
Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro. 1988.