1942
29 de agosto ― No dia 20 deste ―
o dia mais aflitivo de minha vida ―
queimei o meu Diário de um Homem Secreto:
vinte e dois cadernos como este (de duzentas folhas) e dez anos de
apontamentos diários ou quase diários.
Movido
por um impulso suicida, num momento
de extrema angústia, atirei ao fogo, um a um, como pedaços arrancados da
própria carne, meus cadernos de anotações e recordações íntimas. A Noêmia, que
me auxiliava com dor no cruel auto-de-fé,
lia trechos do Diário, aqui e ali,
antes de os dilacerar e atirar à fogueira. Duas ou três vezes, com lágrimas nos
olhos, disse para mim: ― “era a sua
obra-prima”.
Eu
abanava a cabeça, firme no meu propósito de autodestruição.
“Nesses
cadernos, dizia eu a minha mulher, só há maldade, inconveniências, orgulho,
peçonha, muita peçonha... E sobretudo muitas tolices... Ao fogo com tudo isso!”
Dizia-o,
aparentando certa indiferença, mas na realidade eu me sentia rasgar e queimar,
mutilando-me em dez anos de minha vida ― na
melhor parte de minha vida, na única parte boa (ou ao menos sofrível) de minha
vida, recordada, em alguns de seus momentos, naqueles cadernos.
Suicídio?
Sim, sim, suicídio do homem que fui, do homem que era até aquele momento. Na
coluna de fumo do Diário queimado,
ardeu e se desfez em cinzas o homem que eu fui desde princípios de 1932 até à
tarde astrosa de 20 de agosto de 1942.
Mais
de quatro mil páginas manuscritas! Dez anos e pico de Diário! Naturalmente aquelas páginas manuscritas, como estas que
agora começo a escrever, não se destinavam ―
como não se destinam ― a nada,
senão a desaparecer um dia; mas pelas minhas mãos , é duro!
Já
por duas ou três vezes, em ocasiões de crises íntimas, eu tive ímpetos de
destruir meu Diário, depois de um
exame de consciência. Mas ficou só em pensamento.
Desta
vez... Desta vez o ímpeto de autodestruição foi irreprimível. Na coluna de fumo
dos cadernos por mim queimados eu vi desvanecer-se a minha própria
personalidade, aquilo que melhor a exprimira.
Se
me arrependi? Claro que me arrependi, quase imediatamente! Mas, como sou homem
que se resigna facilmente, pensei comigo: “O que lá foi, deixá-lo ir...
Cancele-se o passado e... conta nova”.
Eu
sempre estive disposto a abrir conta nova na minha existência. Quem não é capaz
de fazê-lo corre o risco de ver a própria vida cair em exercício findo, ou,
quando menos, perde muitas de suas perspectivas de renovação.
Meu
diário íntimo intitulava-se Diário de um
Homem Secreto. Título, em verdade, redundante, pois todo diário íntimo é
necessariamente secreto. Durante cerca de quatro anos, o meu o foi. Logo que me
casei, deixou de ser.
Num
estudo magistral sobre Amiel, o espanhol Gregório Marañon refere-se à
incompatibilidade do diário íntimo com a vida conjugal e, em geral, com toda
afeição de tom profundamente cordial. Não se concebe, pensa Marañon, a
companhia de uma verdadeira esposa e ao mesmo tempo o hábito de manter um
diário dessa espécie, esconderijo e confessionário da alma. Que seria do Journal Intime de Amiel, se esse
tremendo egotista se houvesse casado? Amiel, provavelmente, se teria curado dos
males da introspecção, mas por isso mesmo teria sacrificado a sua obra, a razão
de ser de sua existência de tímido e misantropo, de celibatário recalcitrante.
Não foi Tolstói obrigado, por fim, a escrever dois diários ― o íntimo, que a mulher
copiava matreiramente (e ele bem o sabia), e outro, verdadeiramente secreto, que o filho do escritor chamava
das botas, porque Tolstói o escondia
no calçado para que a Condessa não o lesse? Samuel Pepys redigiu o seu famoso Diary ― contabilidade metódica de dez
anos de uma vida, com anotações escabrosas de um homem respeitável que confessa
cinicamente os seus atos vulgares. Pepys, dizia eu, redigiu a sua gazeta íntima
em caracteres secretos e numa geringonça
em que as palavras inglesas se misturavam com latinas, francesas, espanholas,
etc. A chave desse engrimanço ― não
fornecida pelo autor, por esquecimento, ou deliberadamente ― só foi achada mais de um século depois, por um paciente
escabichador de velhos manuscritos. Benjamin
Constant escreveu o seu Journal
em caracteres gregos, para que nenhum de seus parentes o pudesse ler. E são
vários os casos, recorda Marañon, de homens cujos diários terminaram no dia do
casamento.
O
meu sobreviveu sete anos ao casamento. Mas devo confessar que a sua parte mais
interessante, talvez a única interessante, verdadeiramente, era a dos três
primeiros anos, quando ainda me conservava solteiro e já me considerava
celibatário encruado, livre das tentações do matrimônio.
Disse-o
a minha mulher. Ela, que naturalmente conhecia o meu Diário, protestou, dizendo
que todo ele era igualmente bom e que até preferia a parte dos anos de casados.
Não o disse, mas era evidente que tinha ciúmes da outra parte, a de quando eu
estava solteiro.
Casado,
esta é a verdade, continuei a escrevê-lo, mais por hábito que por outra coisa.
Queimei-o, e logo me arrependi. Como pude fazê-lo?
Dez
dias depois do crudelíssimo atentado, não resisto à tentação de recomeçar. Mas
este não renasce das cinzas do outro. Não há renascimento possível. O outro
extinguiu-se, desapareceu totalmente, com a parte da minha vida que eu
considerava melhorzinha.
É
outro Diário. Sou outro homem. E este
não pode ser o diário de um homem secreto, porque nem eu e muito menos o diário
teremos segredos para a minha mulher.
Eduardo
Frieiro
Novo
Diário
Itatiaia.
Belo Horizonte.
1986.