domingo, 26 de maio de 2013

MALDIZENTE, SIM; MALFAZEJO, NUNCA


1942

29 de agosto ― No dia 20 deste o dia mais aflitivo de minha vida queimei o meu Diário de um Homem Secreto: vinte e dois cadernos como este (de duzentas folhas) e dez anos de apontamentos diários ou quase diários.

Movido por um impulso suicida, num momento de extrema angústia, atirei ao fogo, um a um, como pedaços arrancados da própria carne, meus cadernos de anotações e recordações íntimas. A Noêmia, que me auxiliava com dor no cruel auto-de-fé, lia trechos do Diário, aqui e ali, antes de os dilacerar e atirar à fogueira. Duas ou três vezes, com lágrimas nos olhos, disse para mim: “era a sua obra-prima”.

Eu abanava a cabeça, firme no meu propósito de autodestruição.

“Nesses cadernos, dizia eu a minha mulher, só há maldade, inconveniências, orgulho, peçonha, muita peçonha... E sobretudo muitas tolices... Ao fogo com tudo isso!”

Dizia-o, aparentando certa indiferença, mas na realidade eu me sentia rasgar e queimar, mutilando-me em dez anos de minha vida na melhor parte de minha vida, na única parte boa (ou ao menos sofrível) de minha vida, recordada, em alguns de seus momentos, naqueles cadernos.

Suicídio? Sim, sim, suicídio do homem que fui, do homem que era até aquele momento. Na coluna de fumo do Diário queimado, ardeu e se desfez em cinzas o homem que eu fui desde princípios de 1932 até à tarde astrosa de 20 de agosto de 1942.

Mais de quatro mil páginas manuscritas! Dez anos e pico de Diário! Naturalmente aquelas páginas manuscritas, como estas que agora começo a escrever, não se destinavam como não se destinam a nada, senão a desaparecer um dia; mas pelas minhas mãos , é duro!

Já por duas ou três vezes, em ocasiões de crises íntimas, eu tive ímpetos de destruir meu Diário, depois de um exame de consciência. Mas ficou só em pensamento.

Desta vez... Desta vez o ímpeto de autodestruição foi irreprimível. Na coluna de fumo dos cadernos por mim queimados eu vi desvanecer-se a minha própria personalidade, aquilo que melhor a exprimira.

Se me arrependi? Claro que me arrependi, quase imediatamente! Mas, como sou homem que se resigna facilmente, pensei comigo: “O que lá foi, deixá-lo ir... Cancele-se o passado e... conta nova”.

Eu sempre estive disposto a abrir conta nova na minha existência. Quem não é capaz de fazê-lo corre o risco de ver a própria vida cair em exercício findo, ou, quando menos, perde muitas de suas perspectivas de renovação.

Meu diário íntimo intitulava-se Diário de um Homem Secreto. Título, em verdade, redundante, pois todo diário íntimo é necessariamente secreto. Durante cerca de quatro anos, o meu o foi. Logo que me casei, deixou de ser.

Num estudo magistral sobre Amiel, o espanhol Gregório Marañon refere-se à incompatibilidade do diário íntimo com a vida conjugal e, em geral, com toda afeição de tom profundamente cordial. Não se concebe, pensa Marañon, a companhia de uma verdadeira esposa e ao mesmo tempo o hábito de manter um diário dessa espécie, esconderijo e confessionário da alma. Que seria do Journal Intime de Amiel, se esse tremendo egotista se houvesse casado? Amiel, provavelmente, se teria curado dos males da introspecção, mas por isso mesmo teria sacrificado a sua obra, a razão de ser de sua existência de tímido e misantropo, de celibatário recalcitrante. Não foi Tolstói obrigado, por fim, a escrever dois diários o íntimo, que a mulher copiava matreiramente (e ele bem o sabia), e outro, verdadeiramente secreto, que o filho do escritor chamava das botas, porque Tolstói o escondia no calçado para que a Condessa não o lesse? Samuel Pepys redigiu o seu famoso Diary ― contabilidade metódica de dez anos de uma vida, com anotações escabrosas de um homem respeitável que confessa cinicamente os seus atos vulgares. Pepys, dizia eu, redigiu a sua gazeta íntima em caracteres secretos  e numa geringonça em que as palavras inglesas se misturavam com latinas, francesas, espanholas, etc. A chave desse engrimanço não fornecida pelo autor, por esquecimento, ou deliberadamente só foi achada mais de um século depois, por um paciente escabichador de velhos manuscritos. Benjamin  Constant escreveu o seu Journal em caracteres gregos, para que nenhum de seus parentes o pudesse ler. E são vários os casos, recorda Marañon, de homens cujos diários terminaram no dia do casamento.

O meu sobreviveu sete anos ao casamento. Mas devo confessar que a sua parte mais interessante, talvez a única interessante, verdadeiramente, era a dos três primeiros anos, quando ainda me conservava solteiro e já me considerava celibatário encruado, livre das tentações do matrimônio.

Disse-o a minha mulher. Ela, que naturalmente conhecia o meu Diário, protestou, dizendo que todo ele era igualmente bom e que até preferia a parte dos anos de casados. Não o disse, mas era evidente que tinha ciúmes da outra parte, a de quando eu estava solteiro.

Casado, esta é a verdade, continuei a escrevê-lo, mais por hábito que por outra coisa. Queimei-o, e logo me arrependi. Como pude fazê-lo?

Dez dias depois do crudelíssimo atentado, não resisto à tentação de recomeçar. Mas este não renasce das cinzas do outro. Não há renascimento possível. O outro extinguiu-se, desapareceu totalmente, com a parte da minha vida que eu considerava melhorzinha.

É outro Diário. Sou outro homem. E este não pode ser o diário de um homem secreto, porque nem eu e muito menos o diário teremos segredos para a minha mulher.


Eduardo Frieiro
Novo Diário
Itatiaia. Belo Horizonte.

1986.