SETENTRIÃO
Eu sou um pobre homem da Póvoa do
Varzim...
(Eça
de Queiroz: Carta a João Chagas)
Eu
sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se não
exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo
velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o nome
de Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade do Juiz de Fora.
Nasci nessa rua, no número 179, em frente à Mecânica, no sobrado onde reinava
minha avó materna. E nas duas direções apontadas por essa que é hoje a Avenida
Rio Branco hesitou a minha vida. A direção de Milheiros e Mariano Procópio. A
da Rua Espírito Santo e do Alto dos Passos.
A
primeira é o rumo do mato dentro, da subida da Mantiqueira, da garganta de João
Aires, dos profetas carbonizados nos céus em fogo, das cidades decrépitas, das
toponímias de angústia, ameaça e dúvida ― Além Paraíba, Abre Campo, Brumado,
Turvo, Inficionado, Encruzilhada, Caracol, Tremedal, Ribeirão do Carmo, Rio das
Mortes, Sumidouro. Do Belo Horizonte (não esse, mas o outro, que só vive na
dimensão do tempo). E do bojo de Minas. De Minas toda de ferro pesando na
cabeça, vergando os ombros e dobrando os joelhos dos seus filhos. A segunda é a
direção do oceano afora, serra do Mar abaixo, das saídas e das fugas por rias e
restingas, angras, barras, bancos, recifes, ilhas ― singraduras de vento e sal,
pelágicas e genealógicas ― que vão ao Ceará, ao Maranhão, aos Açores, a
Portugal e ao encontro das derrotas latinas do mar Mediterrâneo.
Além
de dar assim leste e oeste para a escolha do destino, a Rua Direita é a reta
onde cabem todas as ruas de Juiz de Fora. Entre o Largo do Riachuelo e o Alto
dos Passos, nela podemos marcar o local psicológico da Rua do Sapo, da Rua do
Comércio, da Rua do Progresso, da Rua do Botanágua, com a mesma precisão com
que, nos mapas do seu underground, os
logradouros de Londres são colocados fora de seu ponto exato, mas rigorosamente
dentro de sua posição relativa. É assim que podemos dividir Juiz de Fora não
apenas nas duas direções da Rua Direita, mas ainda nos dois mundos da Rua
Direita. Sua separação é dada pela Rua Halfeld.
A
Rua Halfeld desce como um rio, do morro do Imperador, e vai desaguar na Praça
da Estação. Entre sua margem direita e o Alto dos Passos estão a Câmara; o
Fórum; a Academia de Comércio, com seus padres; o Stella Matutina, com suas
freiras; a Matriz, com suas irmandades; a Santa Casa de Misericórdia, com seus
provedores; a Cadeia, com seus presos (testemunhas de Deus ― contraste das virtudes do Justo) ― toda uma
estrutura social bem pensante e cafardenta que, se pudesse amordaçar a vida e
suprimir o sexo, não ficaria satisfeita e trataria ainda, como na frase de Rui
Barbosa, de forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre. Esses
estabelecimentos tinham sido criados, com a cidade, por cidadãos prestantes que
praticavam ostensivamente a virtude e amontoavam discretamente cabedais que as
gerações sucessivas acresciam à custa do juro bancário e do casamento
consangüíneo. A densa melancolia dessas instituições transmitia-se aos que as
mantinham ― criação agindo poderosamente sobre os criadores e seus descendentes
que levavam vida impenetrável nas suas casas trancadas, freqüentando-se só nos
apostolados e nas empresas, não conhecendo as passeatas noturnas da Rua
Halfeld, as cervejadas alegres do Foltran (a que era pontual o Dr. Luís
Gonçalves Pena), o Cinema Farol, o Politeama e o Club Juiz de Fora (onde
estalavam carambolas de bilhar e o leque ciumento brandido por D. Cecinha
Valadares na cara das sirigaitas que atiçavam o Chico Labareda). Alguns se
descomprimiam jogando florete, outros caçando macuco, de paletó e boné de
veludo, ou atirando aos pratos, aos pombos. Honrados, taciturnos, caridosos,
castos e temperantes, esses ricos homens traziam geralmente na fisionomia um ar
de fadiga, de contenção e de contraída tristeza que só não se via na face
radiante daqueles que carregavam secretamente o remorso adquirido nas viagens
freqüentes ao Rio de Janeiro ― onde muito se podia.
Pedro
Nava
Baú
de Ossos. Memórias I.
Sabiá.
Rio de Janeiro. 1972.