segunda-feira, 27 de maio de 2013

BAÚS, GALOS E CÍRIOS: CHÃO DE FERRO


SETENTRIÃO

Eu sou um pobre homem da Póvoa do Varzim...

(Eça de Queiroz: Carta a João Chagas)

Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se não exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o nome de Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade do Juiz de Fora. Nasci nessa rua, no número 179, em frente à Mecânica, no sobrado onde reinava minha avó materna. E nas duas direções apontadas por essa que é hoje a Avenida Rio Branco hesitou a minha vida. A direção de Milheiros e Mariano Procópio. A da Rua Espírito Santo e do Alto dos Passos.

A primeira é o rumo do mato dentro, da subida da Mantiqueira, da garganta de João Aires, dos profetas carbonizados nos céus em fogo, das cidades decrépitas, das toponímias de angústia, ameaça e dúvida ― Além Paraíba, Abre Campo, Brumado, Turvo, Inficionado, Encruzilhada, Caracol, Tremedal, Ribeirão do Carmo, Rio das Mortes, Sumidouro. Do Belo Horizonte (não esse, mas o outro, que só vive na dimensão do tempo). E do bojo de Minas. De Minas toda de ferro pesando na cabeça, vergando os ombros e dobrando os joelhos dos seus filhos. A segunda é a direção do oceano afora, serra do Mar abaixo, das saídas e das fugas por rias e restingas, angras, barras, bancos, recifes, ilhas ― singraduras de vento e sal, pelágicas e genealógicas ― que vão ao Ceará, ao Maranhão, aos Açores, a Portugal e ao encontro das derrotas latinas do mar Mediterrâneo.

Além de dar assim leste e oeste para a escolha do destino, a Rua Direita é a reta onde cabem todas as ruas de Juiz de Fora. Entre o Largo do Riachuelo e o Alto dos Passos, nela podemos marcar o local psicológico da Rua do Sapo, da Rua do Comércio, da Rua do Progresso, da Rua do Botanágua, com a mesma precisão com que, nos mapas do seu underground, os logradouros de Londres são colocados fora de seu ponto exato, mas rigorosamente dentro de sua posição relativa. É assim que podemos dividir Juiz de Fora não apenas nas duas direções da Rua Direita, mas ainda nos dois mundos da Rua Direita. Sua separação é dada pela Rua Halfeld.

A Rua Halfeld desce como um rio, do morro do Imperador, e vai desaguar na Praça da Estação. Entre sua margem direita e o Alto dos Passos estão a Câmara; o Fórum; a Academia de Comércio, com seus padres; o Stella Matutina, com suas freiras; a Matriz, com suas irmandades; a Santa Casa de Misericórdia, com seus provedores; a Cadeia, com seus presos (testemunhas de Deus  ― contraste das virtudes do Justo) ― toda uma estrutura social bem pensante e cafardenta que, se pudesse amordaçar a vida e suprimir o sexo, não ficaria satisfeita e trataria ainda, como na frase de Rui Barbosa, de forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre. Esses estabelecimentos tinham sido criados, com a cidade, por cidadãos prestantes que praticavam ostensivamente a virtude e amontoavam discretamente cabedais que as gerações sucessivas acresciam à custa do juro bancário e do casamento consangüíneo. A densa melancolia dessas instituições transmitia-se aos que as mantinham ― criação agindo poderosamente sobre os criadores e seus descendentes que levavam vida impenetrável nas suas casas trancadas, freqüentando-se só nos apostolados e nas empresas, não conhecendo as passeatas noturnas da Rua Halfeld, as cervejadas alegres do Foltran (a que era pontual o Dr. Luís Gonçalves Pena), o Cinema Farol, o Politeama e o Club Juiz de Fora (onde estalavam carambolas de bilhar e o leque ciumento brandido por D. Cecinha Valadares na cara das sirigaitas que atiçavam o Chico Labareda). Alguns se descomprimiam jogando florete, outros caçando macuco, de paletó e boné de veludo, ou atirando aos pratos, aos pombos. Honrados, taciturnos, caridosos, castos e temperantes, esses ricos homens traziam geralmente na fisionomia um ar de fadiga, de contenção e de contraída tristeza que só não se via na face radiante daqueles que carregavam secretamente o remorso adquirido nas viagens freqüentes ao Rio de Janeiro ― onde muito se podia.


Pedro Nava
Baú de Ossos. Memórias I.

Sabiá. Rio de Janeiro. 1972.