sexta-feira, 31 de maio de 2013

EMANUEL E FEDERICO


Nem também não era hora de vaqueirama chegar cantando aboio, em véspera de festa não se trabalhava. Tinha dado ordens. Quem era, quem, gritando assim, de ecoa-cão? Boiada chegava? Não, boiada nenhuma, só o Simião Faço, mais seu irmão Januário, e outros, voltando daí de rumos, depois de semana. Vadiavam. Traziam gente de fora. ― “Eh, Manuelzão, já fomos, já viemos...” Tinham conhecido, de companhia, um sitieiro abastado, chamado seu Vevelho, com seus filhos, tocadores de música. Esse homem arribava de longe, passou o rio, com sua comitiva, muito em cima, no Porto-do-Pontal-do-Abaeté. Viera, por precisar de festa. Traziam seus mantimentos, não incomodavam: ― “Refiro, refiro...” “― Pois é só se chegar, patrício amigo, vosmecê com seus rapazes. Fico muito satisfeito... A festa é da Santa... Aqui tem bebidas doces e bebidas bravas...” Ah, todo o mundo, no longe do redor, iam ficar sabendo quem era ele, Manuelzão, falariam depois com respeito. Daí por mais em diante, nas viagens, pra lá do mais pra lá, passaria numa fazenda, com seus homens, e era a fazenda de um tal, ou filho dum tal, na quebrada dum morro, e o dono saindo na boca da estrada, para convidar: ― “Viva, entra, chega p’ra dentro, Manuelzão! Semos amigos velhos. Eu estive lá na sua Festa...” Dinheiro era para se gastar. Sua mãe, saudosa velhinha, a melhor das de lá no Céu, havia de estar gostando, de muito aprovar. Era a festa dela. Aquele dia, ela estava juntinha com Nossa Senhora. E esses dois, Simião e Jenuário, por que tinham tido de demorar assim tanto, em animais bons, sãos de saúde, com paga na algibeira? ― Manuelzão, a gente não puderam vir antes, este seo Vevelho dava testemunha: um boiadão que chegara e esbarrara, para travessar o rio, três mil e seiscentas cabeças, boiadama dismensa, cortada em doze golpes, três mil e seiscentas reses, pra jogar n’água, na barra do Abaeté. Então até pediram ajuda, pagaram bem. Gado do Urucuia e gado goiano, dois boiadões que se tinham ajuntado, amor de viajar juntas, lá por entre o Cotovelo e a Forquilha, pra cá de Fróis. Tinham pedido ajuda. Mas os vaqueiros deles tinham ido adiante, no Porto-Boi e no Porto-do-Cavalo, beira do Paracatu, encontrar com os outros, receberam o gado todo. Os vaqueiros de Goiás pegaram seu dinheiro ganho, fizeram os sinais-da-cruz e deram a despedida, botando os cavalos para trás, voltando pra suas longes terras. A moçama do Urucuia, também. Contaram que com esses estava o vaqueiro Uapa ― o rei de todos, montado em seu mais bonito alazão. Tinha mais três outros cavalos, e todos obedeciam a ele, afalados, amadrinhados, sabiam o querer de seu assovio. Todos cavalinhos bons, filhos de cavalos de cavalos e éguas de São Romão, cada qual mais faceiro, de crinas finas. Aquilo, ele tocava, montado num, ia cantando, a cara dele lumiava, o cavalo agradecendo; e os outros cavalos dele galopavam, vinham lá de trás, para em volta dele, num contentamento, pediam para dansar, até rinchavam! Boiada em que ele entrasse, não dava trabalho. Todo fazendeiro queria ter em sua fazenda ao menos um campeiro que já tivesse companheirado algum tempo com o Uapa. Mas, tinha coisas, lá de suas certas, que ele mesmo aos outros não podia ensinar. Os goianos falavam pouco, voltaram todos, da beirada do Paracatu; eles estavam com saudade das casas. Boiadão desconforme. Enchiam as várzeas, os bois todos andando, p’r’ acolá, p’r’ acoli, nunca se ouviu berraria tão bonita. Semelhava que iam comer para uma vez o capim dos pastos, rapar o verde dos campos. Estercavam o sertão todo. Na tombada de um morro, inda do lado de lá, mas depois de esbarrarem, a gente veio dar ajuda. E a apartação final. Diziam esse Uapa tivesse podido vir acompanhar, então nem se carecia de ajuda. Uma fartura duma beleza. Hora inteira, o gadame passando, não se acabava. E esse senhor fazendeiro, seo Vevelho, e os filhos, ficaram na beira da porteira, tocando os instrumentos. Seo Vevelho tocando a sanfona. Boi berrava, não berrava, e passava, escutavam quietos, sem toda tristeza. Os filhos de seo Vevelho com o bandolim e a viola. Boiada e mais boiada e mais boiada ― passava adiante. Ô mundo grande! Minrréis, mirigôis!... Até a gente...


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
Corpo de Baile.1º volume.
José Olympio. Rio de Janeiro.

1ª edição. 1956.