Nem
também não era hora de vaqueirama chegar cantando aboio, em véspera de festa
não se trabalhava. Tinha dado ordens. Quem era, quem, gritando assim, de
ecoa-cão? Boiada chegava? Não, boiada nenhuma, só o Simião Faço, mais seu irmão
Januário, e outros, voltando daí de rumos, depois de semana. Vadiavam. Traziam
gente de fora. ― “Eh, Manuelzão, já fomos, já viemos...” Tinham conhecido, de
companhia, um sitieiro abastado, chamado seu Vevelho, com seus filhos,
tocadores de música. Esse homem arribava de longe, passou o rio, com sua
comitiva, muito em cima, no Porto-do-Pontal-do-Abaeté. Viera, por precisar de
festa. Traziam seus mantimentos, não incomodavam: ― “Refiro, refiro...” “― Pois
é só se chegar, patrício amigo, vosmecê com seus rapazes. Fico muito
satisfeito... A festa é da Santa... Aqui tem bebidas doces e bebidas bravas...”
Ah, todo o mundo, no longe do redor, iam ficar sabendo quem era ele, Manuelzão,
falariam depois com respeito. Daí por mais em diante, nas viagens, pra lá do
mais pra lá, passaria numa fazenda, com seus homens, e era a fazenda de um tal,
ou filho dum tal, na quebrada dum morro, e o dono saindo na boca da estrada,
para convidar: ― “Viva, entra, chega p’ra dentro, Manuelzão! Semos amigos
velhos. Eu estive lá na sua Festa...” Dinheiro era para se gastar. Sua mãe,
saudosa velhinha, a melhor das de lá no Céu, havia de estar gostando, de muito
aprovar. Era a festa dela. Aquele dia, ela estava juntinha com Nossa Senhora. E
esses dois, Simião e Jenuário, por que tinham tido de demorar assim tanto, em
animais bons, sãos de saúde, com paga na algibeira? ― Manuelzão, a gente não
puderam vir antes, este seo Vevelho dava testemunha: um boiadão que chegara e
esbarrara, para travessar o rio, três mil e seiscentas cabeças, boiadama
dismensa, cortada em doze golpes, três mil e seiscentas reses, pra jogar
n’água, na barra do Abaeté. Então até pediram ajuda, pagaram bem. Gado do
Urucuia e gado goiano, dois boiadões que se tinham ajuntado, amor de viajar
juntas, lá por entre o Cotovelo e a Forquilha, pra cá de Fróis. Tinham pedido
ajuda. Mas os vaqueiros deles tinham ido adiante, no Porto-Boi e no
Porto-do-Cavalo, beira do Paracatu, encontrar com os outros, receberam o gado
todo. Os vaqueiros de Goiás pegaram seu dinheiro ganho, fizeram os
sinais-da-cruz e deram a despedida, botando os cavalos para trás, voltando pra
suas longes terras. A moçama do Urucuia, também. Contaram que com esses estava
o vaqueiro Uapa ― o rei de todos, montado em seu mais bonito alazão. Tinha mais
três outros cavalos, e todos obedeciam a ele, afalados, amadrinhados, sabiam o
querer de seu assovio. Todos cavalinhos bons, filhos de cavalos de cavalos e
éguas de São Romão, cada qual mais faceiro, de crinas finas. Aquilo, ele
tocava, montado num, ia cantando, a cara dele lumiava, o cavalo agradecendo; e
os outros cavalos dele galopavam, vinham lá de trás, para em volta dele, num
contentamento, pediam para dansar, até rinchavam! Boiada em que ele entrasse,
não dava trabalho. Todo fazendeiro queria ter em sua fazenda ao menos um
campeiro que já tivesse companheirado algum tempo com o Uapa. Mas, tinha
coisas, lá de suas certas, que ele mesmo aos outros não podia ensinar. Os
goianos falavam pouco, voltaram todos, da beirada do Paracatu; eles estavam com
saudade das casas. Boiadão desconforme. Enchiam as várzeas, os bois todos
andando, p’r’ acolá, p’r’ acoli, nunca se ouviu berraria tão bonita. Semelhava
que iam comer para uma vez o capim dos pastos, rapar o verde dos campos. Estercavam
o sertão todo. Na tombada de um morro, inda do lado de lá, mas depois de
esbarrarem, a gente veio dar ajuda. E a apartação final. Diziam esse Uapa
tivesse podido vir acompanhar, então nem se carecia de ajuda. Uma fartura duma
beleza. Hora inteira, o gadame passando, não se acabava. E esse senhor
fazendeiro, seo Vevelho, e os filhos, ficaram na beira da porteira, tocando os
instrumentos. Seo Vevelho tocando a sanfona. Boi berrava, não berrava, e
passava, escutavam quietos, sem toda tristeza. Os filhos de seo Vevelho com o
bandolim e a viola. Boiada e mais boiada e mais boiada ― passava adiante. Ô
mundo grande! Minrréis, mirigôis!... Até
a gente...
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
Corpo
de Baile.1º volume.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.