terça-feira, 21 de maio de 2013

DE FRENTE PRA TRÁS



Tudo ali era à maldição, as sementes de matar. De ouvir o renje uim-uim dessas, perto de nossos cabelos ― eles sobem, de si ―; e chega a doer de nervoso: mas dói real, como se umas daquelas atravessassem até buracal do olho da gente, mas feito dor que vara do céu-da-boca, por dentro dos ossos, pontudamente, igual quando às vezes se come sorvete de gelo... Era a cara pura da morte. ― Av’ave! Marcelino Pampa, logo esse. Nem olhou ninguém. Curvou o corpo quase se quebrando em dois, ia encostar testa no chão; e largou tudo, espaireceu as mãos, e bofou da boca diversos dois feixes de sangue. Sangue dele. Semelhava que um boi nele tivesse pisado... E eu desfechei dez, para a frente, vingando fosse. Daí, vigiei. Um homem morre mais que vive, sem susto de instantaneamente, e está ainda com remela nos olhos, ranho moco no nariz, cuspes na boca, e obra e urina e restos de de-comer, nas barrigas... Mas Marcelino Pampa era ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente que lhe fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim, com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer. E uma vela acesa, uma que fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo alumiar a primeira indicação para a alma dele ― que se diz que o fogo somente é que vige das duas bandas da morte: da de lá, e da de cá... E eu peguei puxei o corpo para não ficar em cima dum vestígio de lama ― porque ali de noite tinha chovido; e Diadorim panhou o chapéu-de-couro, com qual tapou o rosto do dono. A paz no Céu ainda hoje-em-dia, para esse companheiro, Marcelino Pampa, que de certo dava para grande homem-de-bem, caso se tivesse nascido em grande cidade. Ah pá-pá! falei fogo. Aquilo em volta se arrebentava, balalhava.

Mas a gente tinha conseguido de firmar possessão ― agarramos mais da metade do arraial, do arruado. O sobrado restou nosso. Com anseio, olhei, para muito ver, o sobrado rico, da banda da mão direita da rua, com suas portas e janelas pintadas de azul, tão bem esquadriadas. Aquela era a residência alta do Paredão, soberana das outras. Dentro dela estava sobreguardada a Mulher, de custódia. E o menino Guirigó e o cego Borromeu, a salvos. Da parte de cima, das janelas, e das portas no rés, vez a vez meus homens descarregavam. Aquele sobrado, sobradão, parava lá, sobre sereno ― me prazia tudo comandando.

Ir lá?

― “Atual, em riba, estão dois: um é o José Gervásio. Em baixo, na venda, uns quatro...” ― quem me informou disso foi o Jiribibe, em meu ouvido carecendo de altear voz, tanto que espingardaria estrondava.

― “Pouco é, para ações. Tu vai lá, Riobaldo...” ― quem me disse foi Diadorim, em tanto. Surriada zuniu. O tutuco das balas, e as que batiam no chão, as raivosas, tirando terra.

Atirei, seco. Umas três ou quatro vezes. Carreguei em novamente.

― “Aqui é que é meu dever, Diadorim. Por o mais perigoso...” ― eu falei, muito alerta. Tudo que Diadorim aconselhasse, eu punha de remissa; a modo de que com pressentimentos.

― “Tu vai, Riobado. Acolá no alto, é que o lugar de chefe. Com teu dever, pela pontaria mestre: que lá em riba, de lá tu mais alcança... Constante que, aqui, o negócio está garantido...” ― ele disse, mansinho, de me persuadir.

Troquei o rifle-papo pelo máuser, movi mão, fogo. Nesse ato, nem sei se matei. Às artes, lá, o sobrado, que torna mirei e admirei. Meu posto? O quanto também olhei Diadorim: ele, firme se mostrando, feito veada-mãe que vem aparecer e refugir, de propósito, em chamariz de finta, para a gente não dar com o veadinho filhote onde é que está amoitado... Aquele sobrado era a torre. Assumido superior nas alturas dele, é que era para um chefe comandar ― reger o todo cantão de guerra!

― “Eu vou...” ―; fui.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.