segunda-feira, 13 de maio de 2013

G. RAMOS



Rodamos em silêncio, atravessamos o bairro de Jaraguá e a cidade. Não me lembro de haver dito uma palavra ao tenente. Ignorava o destino que me reservavam, mas isto não me despertava nenhuma curiosidade. Fastio, quase indiferença, a vaga compreensão de ter caído numa ratoeira suja, a suspeita de mesquinharia e ridículo no incidente medíocre. Por que estava ali junto de mim aquele sujeito? Balançando nas molas doces, impossibilitado de bater os calcanhares, retesar a espinha, fazer a meia-volta e a continência, anulava-se. A pergunta mental surgida em casa continuava a espicaçar-me. Certo ele não havia determinado a minha prisão, mas era curioso encarregar-se de efetuá-la. Sem me incomodar com essa pequena vingança, pensei noutras, vi o país influenciado pelos tenentes que executam piruetas, pelas sobrinhas dos tenentes que executam piruetas. Desejariam os poderes públicos que eu mandasse aprovar com dolo a sobrinha do tenente, em Penedo? Não me exigiriam expressamente a safadeza, mas deviam existir numerosos tenentes e numerosas sobrinhas, e a conjugação dessas miuçalhas mandava para as grades um pai de família, meio funcionário, meio literato.

Chegamos ao quartel do 20º Batalhão. Estivera ali em 1930, envolvera-me estupidamente numa conspiração besta com um coronel, um major e um comandante de polícia, e vinte e quatro horas depois achava-me preso e só. Dezesseis cretinos de um piquete de Agildo Barata haviam fingido querer fuzilar-me. Um dos soldadinhos que me acompanhavam chorava como um desgraçado. Parecera-me então que a demagogia tenentista, aquele palavrório chocho, nos meteria no atoleiro. Ali estava o resultado: ladroagens, uma onda de burrice a inundar tudo, confusão, mal-entendidos, charlatanismo, energúmenos microcéfalos vestidos de verde a esgoelar-se em discursos imbecis, a semear delações. O levante do 3º Regimento e a revolução de Natal haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um grande homem, e escritores nacionais celebravam nas folhas as virtudes do óleo de rícino. A literatura fugia da terra, andava num ambiente de sonho e loucura, convencional, copiava figurinos estranhos, exibia mamulengos que os leitores recebiam com bocejos e indivíduos sagazes elogiavam demais. O romance abandonava o palavrão, adquiria boas maneiras, tentava comover as datilógrafas e as mocinhas das casas de quatro mil e quatrocentos. Uma beatice exagerada queimava incenso defumando letras e artes corrompidas, e a crítica policial farejava quadros e poemas, entrava nas escolas, denunciava extremismos. Um professor era chamado à delegacia: ― “Esse negócio de africanismo é conversa. O senhor quer inimizar os pretos com a autoridade constituída”. O congresso apavorava-se, largava bambo as leis de arrocho ― e vivíamos de fato numa ditadura sem freio. Esmorecida a resistência, dissolvidos os últimos comícios, mortos ou torturados operários e pequeno-burgueses comprometidos, escritores e jornalistas a desdizer-se, a gaguejar, todas as poltronices a inclinar-se para a direita, quase nada poderíamos fazer perdidos na multidão de carneiros.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. 1ª parte. Viagens.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. Obra póstuma. 1953.