Rodamos
em silêncio, atravessamos o bairro de Jaraguá e a cidade. Não me lembro de
haver dito uma palavra ao tenente. Ignorava o destino que me reservavam, mas
isto não me despertava nenhuma curiosidade. Fastio, quase indiferença, a vaga
compreensão de ter caído numa ratoeira suja, a suspeita de mesquinharia e
ridículo no incidente medíocre. Por que estava ali junto de mim aquele sujeito?
Balançando nas molas doces, impossibilitado de bater os calcanhares, retesar a espinha,
fazer a meia-volta e a continência, anulava-se. A pergunta mental surgida em
casa continuava a espicaçar-me. Certo ele não havia determinado a minha prisão,
mas era curioso encarregar-se de efetuá-la. Sem me incomodar com essa pequena
vingança, pensei noutras, vi o país influenciado pelos tenentes que executam
piruetas, pelas sobrinhas dos tenentes que executam piruetas. Desejariam os
poderes públicos que eu mandasse aprovar com dolo a sobrinha do tenente, em
Penedo? Não me exigiriam expressamente a safadeza, mas deviam existir numerosos
tenentes e numerosas sobrinhas, e a conjugação dessas miuçalhas mandava para as
grades um pai de família, meio funcionário, meio literato.
Chegamos
ao quartel do 20º Batalhão. Estivera ali em 1930, envolvera-me estupidamente
numa conspiração besta com um coronel, um major e um comandante de polícia, e
vinte e quatro horas depois achava-me preso e só. Dezesseis cretinos de um
piquete de Agildo Barata haviam fingido querer fuzilar-me. Um dos soldadinhos
que me acompanhavam chorava como um desgraçado. Parecera-me então que a
demagogia tenentista, aquele palavrório chocho, nos meteria no atoleiro. Ali
estava o resultado: ladroagens, uma onda de burrice a inundar tudo, confusão,
mal-entendidos, charlatanismo, energúmenos microcéfalos vestidos de verde a
esgoelar-se em discursos imbecis, a semear delações. O levante do 3º Regimento
e a revolução de Natal haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se
desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de
viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um
grande homem, e escritores nacionais celebravam nas folhas as virtudes do óleo
de rícino. A literatura fugia da terra, andava num ambiente de sonho e loucura,
convencional, copiava figurinos estranhos, exibia mamulengos que os leitores
recebiam com bocejos e indivíduos sagazes elogiavam demais. O romance
abandonava o palavrão, adquiria boas maneiras, tentava comover as datilógrafas
e as mocinhas das casas de quatro mil e quatrocentos. Uma beatice exagerada
queimava incenso defumando letras e artes corrompidas, e a crítica policial
farejava quadros e poemas, entrava nas escolas, denunciava extremismos. Um
professor era chamado à delegacia: ― “Esse negócio de africanismo é conversa. O
senhor quer inimizar os pretos com a autoridade constituída”. O congresso
apavorava-se, largava bambo as leis de arrocho ― e vivíamos de fato numa
ditadura sem freio. Esmorecida a resistência, dissolvidos os últimos comícios,
mortos ou torturados operários e pequeno-burgueses comprometidos, escritores e
jornalistas a desdizer-se, a gaguejar, todas as poltronices a inclinar-se para
a direita, quase nada poderíamos fazer perdidos na multidão de carneiros.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. 1ª parte. Viagens.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. Obra póstuma. 1953.