sexta-feira, 31 de maio de 2013
OS INCONFIDENTES
4
― INQUIRIÇÕES DE TESTEMUNHAS
4.1
― ASSENTADA
Aos
dezesseis dias do mês de junho de mil e setecentos e oitenta e oitenta e nove
anos, nesta Vila Rica de Nossa Senhora
do Pilar do Ouro Preto, na Cadeia Pública dela onde foi vindo o Desembargador
Pedro José Araújo de Saldanha, Ouvidor Geral e Corregedor desta Comarca, junto
comigo o Bacharel José Caetano César Manitti, Ouvidor e Corregedor da do
Sabará. Escrivão nomeado para esta diligência pelo Ilustríssimo e
Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena, Governador e Capitão General desta
Capitania, e sendo aí, pelo dito Ministro foi mandado vir à sua presença o Tenente-Coronel Domingos de Abreu Vieira,
que se achava preso em segredo na mesma Cadeia, a fim de ser, como foi,
inquirido pelo dito Ministro sobre todo o conteúdo no Auto desta Devassa, do
que para constar
fiz
este termo; e eu, o Bacharel José Caetano César Manitti, Escrivão nomeado, o
escrevi.
Testemunha 1ª
Domingos de Abreu Vieira, Tenente-Coronel do Regimento de Cavalaria Auxiliar
de Minas Novas, natural de São João de Concieiro, Termo de Regalados, Comarca
de Viana, Arcebispado de Braga, morador nesta Vila Rica, onde vive do seu
negócio de administrar o Real Contrato dos Dízimos de que foi rematante o
triênio passado, de idade de sessenta e cinco anos, testemunha a quem o dito
Ministro deferiu o juramento dos Santos Evangelhos em um livro deles, em que
pôs a sua mão direita, sob cargo do qual lhe encarregou jurasse a verdade do
que soubesse e lhe fosse perguntado, o que assim prometeu cumprir como lhe era
encarregado.
E
perguntado ele, testemunha, pelo conteúdo no Auto desta Devassa, que todo lhe
foi lido, disse que vindo hospedar-se em sua casa no mês de agosto ou setembro
do ano pretérito o Padre José da Silva e Oliveira Rolim, da Comarca do Serro
Frio, e observando ele, testemunha, depois de alguns meses desta residência, a
grande amizade e correlação que havia entre o dito Padre e um Alferes do
Regimento Pago desta Capitania, Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o
Tiradentes, lhe perguntou em certa ocasião que amizade tão continuada e
estreita era aquela, ao que lhe respondeu o mesmo Padre que andavam tratando um
negócio de muita importância; e passados alguns dias, indo ele, testemunha,
encontrá-los no mesmo quarto onde se achavam conversando, o que sucedeu pelos
meses de dezembro ou janeiro, então lhe descobriram e declararam ambos que, no
caso de se lançar a derrama como se dizia, estava justo um levante nesta
Capitania, no qual entrava também o Coronel Inácio José de Alvarenga, que tinha
a seu cargo aprontar quatrocentos ou mais homens, e igualmente o dito Padre
José da Silva, concorrendo também o Vigário de São José do Rio das Mortes,
incumbido de aprontar do mesmo modo gente para as bandas de São Paulo;
contando-lhe mais que o Desembargador Tomás Antônio Gonzaga entrava igualmente
naquela confederação prestando o seu conselho; e que todos se juntavam algumas
noites, para este fim, em certa casa que lhe não declararam; e que da mesma
sorte pretendiam interessar naquela rebelião ao Ouvidor da Vila do Príncipe,
Joaquim Antônio Gonzaga, primo daquele Desembargador Tomás Antônio, a quem
haviam de pedir lhe escrevesse para este mesmo efeito; e ele, testemunha,
perfeitamente se lembra haver-lhe asseverado aquele Padre José da Silva, quando
foi ultimamente para o Serro do Frio, a vinte e um de fevereiro segundo sua
lembrança, que ele próprio levava já consigo a mencionada carta para a entregar
ao dito Ouvidor; o que tudo ouvindo ele, testemunha, ficou por extremo absorto
e assustado de semelhante desordem, da qual entrou a dissuadi-los com o maior
esforço que lhe foi possível; e se retirou.
Câmara
dos Deputados e
Governo
do Estado de Minas Gerais
Autos
de Devassa da Inconfidência Mineira
Volume
1. Brasília / Belo Horizonte.
1976.
EMANUEL E FEDERICO
Nem
também não era hora de vaqueirama chegar cantando aboio, em véspera de festa
não se trabalhava. Tinha dado ordens. Quem era, quem, gritando assim, de
ecoa-cão? Boiada chegava? Não, boiada nenhuma, só o Simião Faço, mais seu irmão
Januário, e outros, voltando daí de rumos, depois de semana. Vadiavam. Traziam
gente de fora. ― “Eh, Manuelzão, já fomos, já viemos...” Tinham conhecido, de
companhia, um sitieiro abastado, chamado seu Vevelho, com seus filhos,
tocadores de música. Esse homem arribava de longe, passou o rio, com sua
comitiva, muito em cima, no Porto-do-Pontal-do-Abaeté. Viera, por precisar de
festa. Traziam seus mantimentos, não incomodavam: ― “Refiro, refiro...” “― Pois
é só se chegar, patrício amigo, vosmecê com seus rapazes. Fico muito
satisfeito... A festa é da Santa... Aqui tem bebidas doces e bebidas bravas...”
Ah, todo o mundo, no longe do redor, iam ficar sabendo quem era ele, Manuelzão,
falariam depois com respeito. Daí por mais em diante, nas viagens, pra lá do
mais pra lá, passaria numa fazenda, com seus homens, e era a fazenda de um tal,
ou filho dum tal, na quebrada dum morro, e o dono saindo na boca da estrada,
para convidar: ― “Viva, entra, chega p’ra dentro, Manuelzão! Semos amigos
velhos. Eu estive lá na sua Festa...” Dinheiro era para se gastar. Sua mãe,
saudosa velhinha, a melhor das de lá no Céu, havia de estar gostando, de muito
aprovar. Era a festa dela. Aquele dia, ela estava juntinha com Nossa Senhora. E
esses dois, Simião e Jenuário, por que tinham tido de demorar assim tanto, em
animais bons, sãos de saúde, com paga na algibeira? ― Manuelzão, a gente não
puderam vir antes, este seo Vevelho dava testemunha: um boiadão que chegara e
esbarrara, para travessar o rio, três mil e seiscentas cabeças, boiadama
dismensa, cortada em doze golpes, três mil e seiscentas reses, pra jogar
n’água, na barra do Abaeté. Então até pediram ajuda, pagaram bem. Gado do
Urucuia e gado goiano, dois boiadões que se tinham ajuntado, amor de viajar
juntas, lá por entre o Cotovelo e a Forquilha, pra cá de Fróis. Tinham pedido
ajuda. Mas os vaqueiros deles tinham ido adiante, no Porto-Boi e no
Porto-do-Cavalo, beira do Paracatu, encontrar com os outros, receberam o gado
todo. Os vaqueiros de Goiás pegaram seu dinheiro ganho, fizeram os
sinais-da-cruz e deram a despedida, botando os cavalos para trás, voltando pra
suas longes terras. A moçama do Urucuia, também. Contaram que com esses estava
o vaqueiro Uapa ― o rei de todos, montado em seu mais bonito alazão. Tinha mais
três outros cavalos, e todos obedeciam a ele, afalados, amadrinhados, sabiam o
querer de seu assovio. Todos cavalinhos bons, filhos de cavalos de cavalos e
éguas de São Romão, cada qual mais faceiro, de crinas finas. Aquilo, ele
tocava, montado num, ia cantando, a cara dele lumiava, o cavalo agradecendo; e
os outros cavalos dele galopavam, vinham lá de trás, para em volta dele, num
contentamento, pediam para dansar, até rinchavam! Boiada em que ele entrasse,
não dava trabalho. Todo fazendeiro queria ter em sua fazenda ao menos um
campeiro que já tivesse companheirado algum tempo com o Uapa. Mas, tinha
coisas, lá de suas certas, que ele mesmo aos outros não podia ensinar. Os
goianos falavam pouco, voltaram todos, da beirada do Paracatu; eles estavam com
saudade das casas. Boiadão desconforme. Enchiam as várzeas, os bois todos
andando, p’r’ acolá, p’r’ acoli, nunca se ouviu berraria tão bonita. Semelhava
que iam comer para uma vez o capim dos pastos, rapar o verde dos campos. Estercavam
o sertão todo. Na tombada de um morro, inda do lado de lá, mas depois de
esbarrarem, a gente veio dar ajuda. E a apartação final. Diziam esse Uapa
tivesse podido vir acompanhar, então nem se carecia de ajuda. Uma fartura duma
beleza. Hora inteira, o gadame passando, não se acabava. E esse senhor
fazendeiro, seo Vevelho, e os filhos, ficaram na beira da porteira, tocando os
instrumentos. Seo Vevelho tocando a sanfona. Boi berrava, não berrava, e
passava, escutavam quietos, sem toda tristeza. Os filhos de seo Vevelho com o
bandolim e a viola. Boiada e mais boiada e mais boiada ― passava adiante. Ô
mundo grande! Minrréis, mirigôis!... Até
a gente...
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
Corpo
de Baile.1º volume.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
quinta-feira, 30 de maio de 2013
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
Os
fariseus, ouvindo que ele fechara a boca dos saduceus, reuniram-se em grupo e
um deles ― a fim de pô-lo à prova ― perguntou-lhe: “Mestre, qual é o maior
mandamento da Lei?” Ele respondeu: Amarás
ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu
espírito. Esse é o maior e o
primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos
dependem toda a Lei e os Profetas”.
Mt
22, 34-40
terça-feira, 28 de maio de 2013
A BÍBLIA SAGRADA
A
notícia de que os irmãos de José tinham vindo chegou ao palácio do Faraó, e
tanto o Faraó quanto seus oficiais viram isso com bons olhos. Assim falou o
Faraó a José: “Dize a teus irmãos: ‘Fazei assim: carregai vossos animais e ide
à terra de Canaã. Tomai vosso pai e vossas famílias e voltai para mim; eu vos
darei a melhor terra do Egito e comereis da fartura da terra. Quanto a ti,
dá-lhes esta ordem: Fazei assim: levai da terra do Egito carros para vossos
filhos pequenos e vossas mulheres, tomai vosso pai e vinde. Não tenhais nenhum pesar pelo que deixardes,
porque será vosso o que houver de melhor na terra do Egito.’”
Assim
fizeram os filhos de Israel. José lhes providenciou carros conforme a ordem do
Faraó, e lhes deu provisões para a viagem. A cada um deles deu uma roupa de
festa, mas a Benjamim deu trezentos siclos de prata e cinco roupas de festa. A
seu pai enviou dez jumentos carregados com os melhores produtos do Egito e dez
jumentas carregadas de trigo, pão e víveres para a viagem de seu pai. Depois
despediu seus irmãos, que partiram, não antes que lhes dissesse: “Não vos
exciteis no caminho!”
Eles
subiram, pois, do Egito, e chegaram à terra de Canaã, à casa de seu pai Jacó.
Eles lhe anunciaram: “José ainda vive, é ele quem governa toda a terra do
Egito!” Mas seu coração não palpitava, pois ele não acreditava. Entretanto,
quando repetiram todas as palavras que José lhes dissera, quando viu os carros
que José enviara para levá-lo, então reanimou-se o espírito de seu pai Jacó. E
Israel disse: “Basta! José, meu filho, ainda está vivo! Que eu vá vê-lo antes
de morrer!”
Gn
45, 16-28
segunda-feira, 27 de maio de 2013
BAÚS, GALOS E CÍRIOS: CHÃO DE FERRO
SETENTRIÃO
Eu sou um pobre homem da Póvoa do
Varzim...
(Eça
de Queiroz: Carta a João Chagas)
Eu
sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se não
exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo
velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o nome
de Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade do Juiz de Fora.
Nasci nessa rua, no número 179, em frente à Mecânica, no sobrado onde reinava
minha avó materna. E nas duas direções apontadas por essa que é hoje a Avenida
Rio Branco hesitou a minha vida. A direção de Milheiros e Mariano Procópio. A
da Rua Espírito Santo e do Alto dos Passos.
A
primeira é o rumo do mato dentro, da subida da Mantiqueira, da garganta de João
Aires, dos profetas carbonizados nos céus em fogo, das cidades decrépitas, das
toponímias de angústia, ameaça e dúvida ― Além Paraíba, Abre Campo, Brumado,
Turvo, Inficionado, Encruzilhada, Caracol, Tremedal, Ribeirão do Carmo, Rio das
Mortes, Sumidouro. Do Belo Horizonte (não esse, mas o outro, que só vive na
dimensão do tempo). E do bojo de Minas. De Minas toda de ferro pesando na
cabeça, vergando os ombros e dobrando os joelhos dos seus filhos. A segunda é a
direção do oceano afora, serra do Mar abaixo, das saídas e das fugas por rias e
restingas, angras, barras, bancos, recifes, ilhas ― singraduras de vento e sal,
pelágicas e genealógicas ― que vão ao Ceará, ao Maranhão, aos Açores, a
Portugal e ao encontro das derrotas latinas do mar Mediterrâneo.
Além
de dar assim leste e oeste para a escolha do destino, a Rua Direita é a reta
onde cabem todas as ruas de Juiz de Fora. Entre o Largo do Riachuelo e o Alto
dos Passos, nela podemos marcar o local psicológico da Rua do Sapo, da Rua do
Comércio, da Rua do Progresso, da Rua do Botanágua, com a mesma precisão com
que, nos mapas do seu underground, os
logradouros de Londres são colocados fora de seu ponto exato, mas rigorosamente
dentro de sua posição relativa. É assim que podemos dividir Juiz de Fora não
apenas nas duas direções da Rua Direita, mas ainda nos dois mundos da Rua
Direita. Sua separação é dada pela Rua Halfeld.
A
Rua Halfeld desce como um rio, do morro do Imperador, e vai desaguar na Praça
da Estação. Entre sua margem direita e o Alto dos Passos estão a Câmara; o
Fórum; a Academia de Comércio, com seus padres; o Stella Matutina, com suas
freiras; a Matriz, com suas irmandades; a Santa Casa de Misericórdia, com seus
provedores; a Cadeia, com seus presos (testemunhas de Deus ― contraste das virtudes do Justo) ― toda uma
estrutura social bem pensante e cafardenta que, se pudesse amordaçar a vida e
suprimir o sexo, não ficaria satisfeita e trataria ainda, como na frase de Rui
Barbosa, de forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre. Esses
estabelecimentos tinham sido criados, com a cidade, por cidadãos prestantes que
praticavam ostensivamente a virtude e amontoavam discretamente cabedais que as
gerações sucessivas acresciam à custa do juro bancário e do casamento
consangüíneo. A densa melancolia dessas instituições transmitia-se aos que as
mantinham ― criação agindo poderosamente sobre os criadores e seus descendentes
que levavam vida impenetrável nas suas casas trancadas, freqüentando-se só nos
apostolados e nas empresas, não conhecendo as passeatas noturnas da Rua
Halfeld, as cervejadas alegres do Foltran (a que era pontual o Dr. Luís
Gonçalves Pena), o Cinema Farol, o Politeama e o Club Juiz de Fora (onde
estalavam carambolas de bilhar e o leque ciumento brandido por D. Cecinha
Valadares na cara das sirigaitas que atiçavam o Chico Labareda). Alguns se
descomprimiam jogando florete, outros caçando macuco, de paletó e boné de
veludo, ou atirando aos pratos, aos pombos. Honrados, taciturnos, caridosos,
castos e temperantes, esses ricos homens traziam geralmente na fisionomia um ar
de fadiga, de contenção e de contraída tristeza que só não se via na face
radiante daqueles que carregavam secretamente o remorso adquirido nas viagens
freqüentes ao Rio de Janeiro ― onde muito se podia.
Pedro
Nava
Baú
de Ossos. Memórias I.
Sabiá.
Rio de Janeiro. 1972.
domingo, 26 de maio de 2013
MALDIZENTE, SIM; MALFAZEJO, NUNCA
1942
29 de agosto ― No dia 20 deste ―
o dia mais aflitivo de minha vida ―
queimei o meu Diário de um Homem Secreto:
vinte e dois cadernos como este (de duzentas folhas) e dez anos de
apontamentos diários ou quase diários.
Movido
por um impulso suicida, num momento
de extrema angústia, atirei ao fogo, um a um, como pedaços arrancados da
própria carne, meus cadernos de anotações e recordações íntimas. A Noêmia, que
me auxiliava com dor no cruel auto-de-fé,
lia trechos do Diário, aqui e ali,
antes de os dilacerar e atirar à fogueira. Duas ou três vezes, com lágrimas nos
olhos, disse para mim: ― “era a sua
obra-prima”.
Eu
abanava a cabeça, firme no meu propósito de autodestruição.
“Nesses
cadernos, dizia eu a minha mulher, só há maldade, inconveniências, orgulho,
peçonha, muita peçonha... E sobretudo muitas tolices... Ao fogo com tudo isso!”
Dizia-o,
aparentando certa indiferença, mas na realidade eu me sentia rasgar e queimar,
mutilando-me em dez anos de minha vida ― na
melhor parte de minha vida, na única parte boa (ou ao menos sofrível) de minha
vida, recordada, em alguns de seus momentos, naqueles cadernos.
Suicídio?
Sim, sim, suicídio do homem que fui, do homem que era até aquele momento. Na
coluna de fumo do Diário queimado,
ardeu e se desfez em cinzas o homem que eu fui desde princípios de 1932 até à
tarde astrosa de 20 de agosto de 1942.
Mais
de quatro mil páginas manuscritas! Dez anos e pico de Diário! Naturalmente aquelas páginas manuscritas, como estas que
agora começo a escrever, não se destinavam ―
como não se destinam ― a nada,
senão a desaparecer um dia; mas pelas minhas mãos , é duro!
Já
por duas ou três vezes, em ocasiões de crises íntimas, eu tive ímpetos de
destruir meu Diário, depois de um
exame de consciência. Mas ficou só em pensamento.
Desta
vez... Desta vez o ímpeto de autodestruição foi irreprimível. Na coluna de fumo
dos cadernos por mim queimados eu vi desvanecer-se a minha própria
personalidade, aquilo que melhor a exprimira.
Se
me arrependi? Claro que me arrependi, quase imediatamente! Mas, como sou homem
que se resigna facilmente, pensei comigo: “O que lá foi, deixá-lo ir...
Cancele-se o passado e... conta nova”.
Eu
sempre estive disposto a abrir conta nova na minha existência. Quem não é capaz
de fazê-lo corre o risco de ver a própria vida cair em exercício findo, ou,
quando menos, perde muitas de suas perspectivas de renovação.
Meu
diário íntimo intitulava-se Diário de um
Homem Secreto. Título, em verdade, redundante, pois todo diário íntimo é
necessariamente secreto. Durante cerca de quatro anos, o meu o foi. Logo que me
casei, deixou de ser.
Num
estudo magistral sobre Amiel, o espanhol Gregório Marañon refere-se à
incompatibilidade do diário íntimo com a vida conjugal e, em geral, com toda
afeição de tom profundamente cordial. Não se concebe, pensa Marañon, a
companhia de uma verdadeira esposa e ao mesmo tempo o hábito de manter um
diário dessa espécie, esconderijo e confessionário da alma. Que seria do Journal Intime de Amiel, se esse
tremendo egotista se houvesse casado? Amiel, provavelmente, se teria curado dos
males da introspecção, mas por isso mesmo teria sacrificado a sua obra, a razão
de ser de sua existência de tímido e misantropo, de celibatário recalcitrante.
Não foi Tolstói obrigado, por fim, a escrever dois diários ― o íntimo, que a mulher
copiava matreiramente (e ele bem o sabia), e outro, verdadeiramente secreto, que o filho do escritor chamava
das botas, porque Tolstói o escondia
no calçado para que a Condessa não o lesse? Samuel Pepys redigiu o seu famoso Diary ― contabilidade metódica de dez
anos de uma vida, com anotações escabrosas de um homem respeitável que confessa
cinicamente os seus atos vulgares. Pepys, dizia eu, redigiu a sua gazeta íntima
em caracteres secretos e numa geringonça
em que as palavras inglesas se misturavam com latinas, francesas, espanholas,
etc. A chave desse engrimanço ― não
fornecida pelo autor, por esquecimento, ou deliberadamente ― só foi achada mais de um século depois, por um paciente
escabichador de velhos manuscritos. Benjamin
Constant escreveu o seu Journal
em caracteres gregos, para que nenhum de seus parentes o pudesse ler. E são
vários os casos, recorda Marañon, de homens cujos diários terminaram no dia do
casamento.
O
meu sobreviveu sete anos ao casamento. Mas devo confessar que a sua parte mais
interessante, talvez a única interessante, verdadeiramente, era a dos três
primeiros anos, quando ainda me conservava solteiro e já me considerava
celibatário encruado, livre das tentações do matrimônio.
Disse-o
a minha mulher. Ela, que naturalmente conhecia o meu Diário, protestou, dizendo
que todo ele era igualmente bom e que até preferia a parte dos anos de casados.
Não o disse, mas era evidente que tinha ciúmes da outra parte, a de quando eu
estava solteiro.
Casado,
esta é a verdade, continuei a escrevê-lo, mais por hábito que por outra coisa.
Queimei-o, e logo me arrependi. Como pude fazê-lo?
Dez
dias depois do crudelíssimo atentado, não resisto à tentação de recomeçar. Mas
este não renasce das cinzas do outro. Não há renascimento possível. O outro
extinguiu-se, desapareceu totalmente, com a parte da minha vida que eu
considerava melhorzinha.
É
outro Diário. Sou outro homem. E este
não pode ser o diário de um homem secreto, porque nem eu e muito menos o diário
teremos segredos para a minha mulher.
Eduardo
Frieiro
Novo
Diário
Itatiaia.
Belo Horizonte.
1986.
sábado, 25 de maio de 2013
UMA CASA DE DEUS E DO DIABO
26.
Ernest MÜLLER História da Mística
Judaica
27.
Régis de MORAIS et alii As Razões do
Mito
28.
Antônio MARTINI et alii O Humano, Lugar
do Sagrado
29.
J. C. ISMAEL Thomas Merton, o Apóstolo
da Compaixão
30.
Harriet SWAIN Grandes Questões da
Ciência
31.
Carlos Rodrigues BRANDÃO Festim dos
Bruxos
32.
Sören A. KIERKEGAARD O Conceito de
Angústia
34.
Alba ZALUAR Os Homens de Deus
35.
Renato Janine RIBEIRO Humanidades um
novo curso na usp
36.
Arnold ZWEIG O Pensamento Vivo de
Spinoza
37.
Régis JOLIVET Las Doctrinas
Existencialistas
38.
José Ferrater MORA Dicionário de
Filosofia
39.
Mircea ELIADE História das Crenças e
das Idéias Religiosas I-II
40.
Mansour CHALLITA Obras de Gibran Khalil
Gibran
41.
H. TAINE Stuart Mill (o positivismo
inglês)
42.
E. M. CIORAN A Tentação de Existir
43.
Auguste ETCHEVERRY O Conflito Atual dos
Humanismos
44.
João Carlos SALLES O Claro e o Obscuro
45.
Karl JASPERS Iniciação Filosófica
46.
Mircea ELIADE História das Crenças e
das Idéias Religiosas I—I
47.
Jacques MONOD O Acaso e a Necessidade
48.
Bhagwan Shree RAJNEESH A Semente de
Mostarda
49.
José Guilherme MERQUIOR Michel Foucault
ou o niilismo de cátedra
50.
Martin BUBER Do Diálogo e do Dialógico
sexta-feira, 24 de maio de 2013
ONDE CANTA O SABIÁ
O
PORTO DE MINHA INFÂNCIA (FINAL)
Às
vezes a navegação ficava impossível durante meses, o que devia destrambelhar as
finanças da empresa. Houve algumas transferências de contratos, coisas
aborrecidas que não vou historiar. Uma publicação de 1920, do Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio, ainda dizia: “Durante as águas é grande o
número de embarcações a vapor, gasolina, vela e remos que auxiliam os
transportes entre Cachoeiro e Barra de Itapemirim numa distância de 42 km ...” Era mais do que
contava, em maus versos, em 1885, o padre Antunes Siqueira:
“...Nele
cruzam em fluvial carreira
Dois
vapores muito regularmente.
Vão
do Itapemirim a Caxoeira,
Quando
das águas lhes permite a enchente,
Dali
voltam em viagem prazenteira
Conduzindo
carga e muita gente.”
No
princípio deste século o vaporzinho São
Luís, de Soares & Irmão, era a principal ligação entre Cachoeiro e a
Barra. Vejo-o numa foto de 1922, e me lembra da única vez em que o vi
pessoalmente. Eu devia ter oito anos, e o achei fascinante. Um senhor com ares
superiores dizia que a viagem era muito perigosa; o barco podia encalhar ou
arrebentar-se. Uma vez ele bateu num galho em que havia uma casa de marimbondos
e estes atacaram os passageiros. De outra vez foi pior: quando o vaporzinho
passava sob uma árvore da margem esquerda, caiu nele uma cobra. “Venenosa?” ―
perguntou alguém. “Claro!” ― afirmou ele, como se considerasse indigno de sua
pessoa ter feito referência a uma cobra que não fosse venenosa. “E aí, o que
houve?” ― perguntou ainda outra pessoa. E ele com um ar irritado: ― “O que
houve, o que houve? Ora, cai uma cobra venenosa dentro de um barco, e você quer
saber o que houve, o que houve?”
Nesse
momento o vaporzinho apitou para partir, e nunca ficamos sabendo, afinal de
contas, o que houve.
Lembro-me
de que uma vez meu pai viajou no vaporzinho. Eu disse que queria ir, mas alguém
disse que quem iria era meu irmão mais velho, e eu teria de esperar a minha
vez. Era razoável. Mas o diabo é que ainda havia outros dois irmãos mais velhos
para ir antes de mim! Foi a essa altura que inventaram a estrada de ferro, que
depois arrancaram para substituir pela estrada de rodagem ― e adeus São Luís, adeus para sempre, vaporzinho São Luís das primeiras de minhas grandes
navegações que nunca houve.
Incendiou-se em 1988.
Rubem
Braga
As
Boas Coisas da Vida
quinta-feira, 23 de maio de 2013
IMPERADOR DA LÍNGUA PORTUGUESA
II - Semen
est Verbum Dei
O
trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os
espinhos, as pedras, o caminho, e a terra boa, em que o trigo caiu, são os
diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com
cuidados, com riquezas, com delícias; e n’estes afoga-se a palavra de Deus. As
pedras são os corações duros e obstinados; e n’estes seca-se a palavra de Deus,
e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e
perturbados com a passagem e tropel das coisas do mundo, umas que vão, outras
que vêm, outras que atravessam , e todas passam; e n’estes é pisada a palavra
de Deus, porque ou a desatendem, ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os
corações bons, ou os homens de bom coração; e n’estes prende e frutifica a
palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
Este
grande frutificar da palavra de Deus, é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou
admiração que me traz suspenso e confuso depois que subo ao púlpito. Se a
palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da
palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já
eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se
convertera e emendara um homem já o mundo fora santo. Este argumento de fé,
fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência,
comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias
eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias dos admiráveis efeitos da pregação
da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta
reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do mundo;
os reis renunciando os cetros e as coroas; as mocidades e as gentilezas
metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? Nada disto. Nunca na igreja de
Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se
semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em uma
sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um
velho que se desengane, que é isto? Assim como Deus não é hoje menos
Onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa, do que dantes era.
Pois se a palavra dee Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos
pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta tão
grande e tão importante dúvida será a matéria do sermão. Quero começar
pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim para aprender a pregar; e
a vós para que aprendais a ouvir.
Padre
Antônio Vieira
Sermão
da Sexagésima
quarta-feira, 22 de maio de 2013
NÃO É MOTOR DE TUDO E NOSSA ÚNICA / FONTE DE LUZ, NA LUZ DE SUA TÚNICA?
DISCRETA
Se
finjo acreditar sempre que insistes
em
professar completa ignorância
daquilo
que conheces desde a infância,
mas
contra teu saber inda resistes,
é
que em teu corpo a carne alerta e triste
não
pensa nem calcula: é pura ânsia;
nem
atribui a menor importância
ao
que faltava ali, quando me vistes.
Foi
teu desejo que fez o segredo
de
onde teço minh’arte, feiticeira,
a
fim de exercitar as artes tuas;
que
meu vazio não te faça medo:
pois
se não me foi dado ser inteira
tampouco
me terás menos que duas.
Maria
Rita Kehl
terça-feira, 21 de maio de 2013
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
Foi
dentro de condições físicas assim adversas que se exerceu o esforço civilizador
dos portugueses nos trópicos. Tivessem sido aquelas condições as fáceis e doces
de que falam os panegiristas da nossa natureza e teriam razão os sociólogos e
economistas que, contrastando o difícil triunfo lusitano no Brasil com o rápido
e sensacional dos ingleses naquela parte da América de clima estimulante, flora
equilibrada, fauna antes auxiliar que inimiga do homem, condições agrológicas e
geológicas favoráveis, onde hoje esplende a formidável civilização dos Estados
Unidos, concluem pela superioridade do colonizador louro sobre o moreno.
Antes
de vitoriosa a colonização portuguesa do Brasil, não se compreendia outro tipo
de domínio europeu nas regiões tropicais que não fosse o da exploração
comercial através de feitorias ou da pura extração de riqueza mineral. Em
nenhum dos casos se considerara a sério o prolongamento da vida européia ou a
adaptação dos seus valores morais e materiais a meios e climas tão diversos;
tão mórbidos e dissolventes.
O
colonizador português do Brasil foi o primeiro dentre os colonizadores modernos
a deslocar a base da colonização tropical da pura extração de riqueza mineral,
vegetal ou animal ― o ouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim ― para a de
criação local de riqueza. Ainda que riqueza ― a criada por eles sob a pressão
das circunstâncias americanas ― à custa
do trabalho escravo: tocada, portanto, daquela perversão de instinto econômico
que cedo desviou o português da atividade de produzir valores para a de
explorá-los, transportá-los ou adquiri-los.
Semelhante
deslocamento, embora imperfeitamente realizado, importou numa nova fase e num
novo tipo de colonização: a “colônia de plantação”, caracterizada pela base
agrícola e pela permanência do colono na terra, em vez do seu fortuito contato
com o meio e com a gente nativa. No Brasil iniciaram os portugueses a
colonização em larga escala dos trópicos por uma técnica econômica e por uma
política social inteiramente novas: apenas esboçadas nas ilhas subtropicais do
Atlântico. A primeira: a utilização e o desenvolvimento de riqueza vegetal pelo
capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a sesmaria; a grande
lavoura escravocrata. A segunda: o aproveitamento da gente nativa,
principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho mas como elemento
de formação da família. Semelhante política foi bem diversa da de extermínio ou
segregação seguida por largo tempo no México e no Peru pelos espanhóis,
exploradores de minas, e sempre e desbragadamente na América do Norte pelos
ingleses.
A
sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da
Bahia, desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes
plantações de açúcar, não em grupos a esmo e instáveis; em casas-grandes de
taipa ou de pedra e cal, não em palhoças de aventureiros. Observa Oliveira Martins
que a população colonial no Brasil, “especialmente ao norte, constituiu-se
aristocraticamente, isto é, as casas de Portugal enviaram ramos para o ultramar, desde todo o
princípio a colônia apresentou um aspecto diverso das turbulentas imigrações
dos castelhanos na América Central e ocidental. E antes dele já escrevera
Southey que nas casas de engenho de Pernambuco encontravam-se, nos primeiros
séculos de colonização, as decências e o conforto que debalde se procurariam
entre as populações do Paraguai e do Prata.
Gilberto
Freyre
Casa-Grande
& Senzala
DE FRENTE PRA TRÁS
Tudo
ali era à maldição, as sementes de matar. De ouvir o renje uim-uim dessas,
perto de nossos cabelos ― eles sobem, de si ―; e chega a doer de nervoso: mas
dói real, como se umas daquelas atravessassem até buracal do olho da gente, mas
feito dor que vara do céu-da-boca, por dentro dos ossos, pontudamente, igual
quando às vezes se come sorvete de gelo... Era a cara pura da morte. ― Av’ave! Marcelino Pampa, logo esse. Nem
olhou ninguém. Curvou o corpo quase se quebrando em dois, ia encostar testa no
chão; e largou tudo, espaireceu as mãos, e bofou da boca diversos dois feixes
de sangue. Sangue dele. Semelhava que um boi nele tivesse pisado... E eu desfechei
dez, para a frente, vingando fosse. Daí, vigiei. Um homem morre mais que vive,
sem susto de instantaneamente, e está ainda com remela nos olhos, ranho moco no
nariz, cuspes na boca, e obra e urina e restos de de-comer, nas barrigas... Mas
Marcelino Pampa era ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente
que lhe fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim, com tão legítimo
valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer. E uma vela acesa, uma que
fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo alumiar a primeira indicação para a alma
dele ― que se diz que o fogo somente é que vige das duas bandas da morte: da de
lá, e da de cá... E eu peguei puxei o corpo para não ficar em cima dum vestígio
de lama ― porque ali de noite tinha chovido; e Diadorim panhou o
chapéu-de-couro, com qual tapou o rosto do dono. A paz no Céu ainda
hoje-em-dia, para esse companheiro, Marcelino Pampa, que de certo dava para
grande homem-de-bem, caso se tivesse nascido em grande cidade. Ah pá-pá! falei
fogo. Aquilo em volta se arrebentava, balalhava.
Mas
a gente tinha conseguido de firmar possessão ― agarramos mais da metade do
arraial, do arruado. O sobrado restou nosso. Com anseio, olhei, para muito ver,
o sobrado rico, da banda da mão direita da rua, com suas portas e janelas
pintadas de azul, tão bem esquadriadas. Aquela era a residência alta do Paredão,
soberana das outras. Dentro dela estava sobreguardada a Mulher, de custódia. E
o menino Guirigó e o cego Borromeu, a salvos. Da parte de cima, das janelas, e
das portas no rés, vez a vez meus homens descarregavam. Aquele sobrado,
sobradão, parava lá, sobre sereno ― me prazia tudo comandando.
Ir
lá?
―
“Atual, em riba, estão dois: um é o José Gervásio. Em baixo, na venda, uns
quatro...” ― quem me informou disso foi o Jiribibe, em meu ouvido carecendo de
altear voz, tanto que espingardaria estrondava.
―
“Pouco é, para ações. Tu vai lá, Riobaldo...” ― quem me disse foi Diadorim, em
tanto. Surriada zuniu. O tutuco das balas, e as que batiam no chão, as
raivosas, tirando terra.
Atirei,
seco. Umas três ou quatro vezes. Carreguei em novamente.
―
“Aqui é que é meu dever, Diadorim. Por o mais perigoso...” ― eu falei, muito
alerta. Tudo que Diadorim aconselhasse, eu punha de remissa; a modo de que com
pressentimentos.
―
“Tu vai, Riobado. Acolá no alto, é que o lugar de chefe. Com teu dever, pela
pontaria mestre: que lá em riba, de lá tu mais alcança... Constante que, aqui,
o negócio está garantido...” ― ele disse, mansinho, de me persuadir.
Troquei
o rifle-papo pelo máuser, movi mão, fogo. Nesse ato, nem sei se matei. Às
artes, lá, o sobrado, que torna mirei e admirei. Meu posto? O quanto também
olhei Diadorim: ele, firme se mostrando, feito veada-mãe que vem aparecer e
refugir, de propósito, em chamariz de finta, para a gente não dar com o
veadinho filhote onde é que está amoitado... Aquele sobrado era a torre.
Assumido superior nas alturas dele, é que era para um chefe comandar ― reger o
todo cantão de guerra!
―
“Eu vou...” ―; fui.
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
sábado, 18 de maio de 2013
ONDE CANTA O SABIÁ
COMO
SE FORA UM CORAÇÃO POSTIÇO
Nasceu,
na doce Budapeste, um menino com o coração fora do peito. Porém ― diz um Dr.
Mereje ― não foi o primeiro. Em São Paulo, há sete anos, nasceu também uma
criança assim. “Tinha o coração fora do peito, como se fora um coração
postiço.”
Como
se fora um coração postiço... O menino paulista viveu quatro horas. Vamos supor
que tenha nascido às cinco horas. Cinco horas! Cinco horas! Um meu amigo, por
nome Carlos, diria:
―
... a hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam...
Madrugada
paulista. Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo
esforço para ser boêmio. Há uma esperança de bonde em todos os postes. Os
sinais das esquinas ― vermelhos, amarelos, verdes... ― verdes, amarelos,
vermelhos ―borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Olhos inquietos da
madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Chá,
contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém nunca jamais contemplou.
Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas flores roxas e brancas. Humildes
manacás, em fila, pequenos, tristes, artificiais. As esquinas piscam. O olho
vermelho do sinal sonolento, tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz.
Apitos lá longe. Passam homens de cara lavada, pobres, com embrulhos de jornais
debaixo do braço. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas.
Nasceu, em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um menino com o
coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto fechado, abafado, com a
lâmpada acesa, gente suada. Menino do coração fora do peito, você devia vir cá
fora receber o beijo da madrugada.
Seis
horas. O coração fora do peito bate docemente. Sete horas ― o coração bate...
Oito horas ― que sol claro, que barulho na rua! ― o coração bate...
Nove
horas ― morreu o menino do coração fora do peito. Fez bem em morrer, menino. O
Dr. Mereje resmunga: “Filho de pais alcoólatras e sifilíticos...” Deixe falar o
Dr. Mereje. Ele é um médico, você é o menino do coração fora do peito. Está
morto. Os “pais alcoólatras e sifilíticos” fazem o enterro banal do anjinho
suburbano. Mas que anjinho engraçado! ― diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho
está no céu. Está no limbo, com o coração fora do peito. Os outros anjinhos
olham espantados. O que é isso, seu paulista? Mas o menino do coração fora do
peito está se rindo. Não responde nada. Podia contar a sua história: “o Dr.
Mereje disse que...” ― mas não conta. Está rindo, mas está triste.
Rubem
Braga
Como
se Fora um Coração Postiço
em
O Conde e o Passarinho
Record.
Rio de Janeiro. 2002.
UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
GEONAL
em
trilhos de ar
cavalos
equânimes
percorrem
os trópicos:
capricórnio
e câncer
na
areia solar
lontras
sonolentas
cozem-se
e agaves
tecem
meridianos
de
conchas e pérolas
na
água do mar
líricos
antílopes
estupram
espumas
e
apostam com algas
marrom
maratona
no
fosco olhar
é
circo geral
de
seres e peças
em
noite de gala
do
tédio real
‘O
Metropolitano”, suplemento estudantil do “Diário de Notícias”.
Rio de Janeiro. 1958
ou 1959.
quinta-feira, 16 de maio de 2013
OTELO E SANT'IAGO
UM
PLANO
Pai
nem mãe foram ter conosco, quando Capitu e eu, na sala de visitas, falávamos do
seminário. Com os olhos em mim, Capitu queria saber que notícia era a que me
afligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se cor de cera.
―
Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminários; não entro, é
escusado teimarem comigo; não entro.
Capitu
a princípio não disse nada. Recolheu os olhos, meteu-os em si e deixou-se estar
com as pupilas vagas e surdas, a boca entreaberta, toda parada. Então eu, para
dar força às afirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquele tempo
jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a
luz me faltasse na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia
crer nem descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis
chamá-la, sacudi-la, mas faltou-me ânimo. Essa criatura que brincara comigo,
que pulara, dançara, creio até que dormira comigo, deixava-me agora com os
braços atados e medrosos. Enfim, tornou a si, mas tinha a cara lívida, e rompeu
nestas palavras furiosas:
―
Beata! Carola! Papa-missas!
Fiquei
aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu não podia
entender tamanha explosão. É verdade que também gostava de mim, e naturalmente
mais, ou melhor, ou de outra maneira, cousa bastante a explicar o despeito que
lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como entender que lhe
chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos,
que eram os seus? Que ela também ia à missa, e três ou quatro vezes minha mãe é
que a levou, na nossa velha sege. Também lhe dera um rosário, uma cruz de ouro
e u livro de Horas... Quis defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a
chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive medo fosse ouvida dos pais.
Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta a dizer tudo a todos.
Cerrava os dentes, abanava a cabeça... Eu, assustado, não sabia que fizesse;
repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite declarar em casa que,
que, por nada neste mundo, entraria no seminário.
―
Você? Você entra.
―
Não entro.
―
Você verá se entra ou não.
Calou-se
outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não era ainda a Capitu do
costume, mas quase. Estava séria, sem afliçao, falava baixo. Quis saber a
conversação da minha casa; eu contei-lha toda, menos a parte que lhe dizia
respeito.
― E
que interesse tem José Dias em lembrar isto? , perguntou-me no fim.
―
Acho que nenhum; foi só pra fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe
estar que me há de pagar. Quando eu for dono da casa, quem vai para a rua é
ele, você verá; não me fica um instante. Mamãe é boa demais; dá-lhe atenção
demais. Parece até que chorou.
―
José Dias?
―
Não, mamãe.
―
Chorou por quê?
Não
sei; ouvi só dizer que ela não chorasse, que não era cousa de choro... Ele
chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então, para não ser apanhado,
deixei o canto e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que ele me paga!
Disse
isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembrá-las, não me acho
ridículo; a adolescência e a infância não são, neste ponto, ridículas; é um dos
seus privilégios. Este mal ou este perigo começa na mocidade, cresce na
madureza e atinge o maior grau na velhice. Aos quinze anos, há até certa graça
em ameaçar muito e não executar nada.
Capitu
refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo
apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras
de uns e de outros, e o tom delas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da
conversa, que era ela mesma, não lhe pude dar toda a significação. A atenção de
Capitu estava agora particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de
entendê-las. Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha
mãe me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, não
podia deixar de cumprir. Fiquei tão satisfeito de ver que assim espontaneamente
reparava as injúrias que lhe saíram do peito, pouco antes, que peguei da mão
dela e apertei-a muito. Capitu deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a
cochilar e dormir. Tínhamos chegado à janela; um preto, que, desde algum tempo,
vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou:
―
Sinhazinha, qué cocada hoje?
―
Não, respondeu Capitu.
―
Cocadinha tá boa.
―
Vá-se embora, replicou ela sem rispidez.
―
Dê cá!, disse eu descendo o braço para receber duas.
Comprei-as,
mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da crise, eu
conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeição como
imperfeição, mas o momento não é para definições tais; fiquemos em que a minha
amiga, apesar de equilibrada e lúcida, não quis saber de doce, e gostava muito
de doce. Ao contrário, o pregão que o preto foi cantando, o pregão das velhas
tardes, tão sabido do bairro e da nossa infãncia:
Chora, menina, chora,
Chora, porque não tem
Vintém,
a
modo que lhe deixara uma impressão aborrecida. Da toada não era; ela a sabia de
cor e de longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando,
trocando os papéis comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio
que a letra, destinada a picar a vaidade das crianças, foi que a enojou agora,
porque logo depois me disse:
―
Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.
Dito
isto, espreitou-me os olhos, mas creio que eles não lhe disseram nada, ou só
agradeceram a boa intenção. Com efeito, o sentimento era tão amigo que eu podia
escusar o extraordinário da aventura.
Como
vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que
outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se
hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos
saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção grande executada
por meios pequenos. Assim, para não sair do desejo vago e hipotético de me
mandar para a Europa, Capitu, se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no
paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por onde eu,
parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça, iria realmente até Bordéus,
deixando minha mãe na praia, à espera. Tal era a feição particular do caráter
da minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus projetos de resistência
franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ação do empenho, da palavra, da
persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podíamos contar. Rejeitou
tio Cosme; era um “boa-vida”; se não aprovava a minha ordenação, não era capaz
de dar um passo para suspendê-la. Prima Justina era melhor que ele, e melhor
que os dous seria o padre Cabral, pela autoridade, mas o padre não havia de
trabalhar contra a Igreja; só se eu lhe confessasse que não tinha vocação...
―
Posso confessar?
―
Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor é outra cousa . José
Dias...
―
Que tem José Dias?
―
Pode ser um bom empenho.
―
Nas se foi ele mesmo que falou...
―
Não importa, continuou Capitu; dirá agora outra cousa. Ele gosta muito de você.
Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que de vir a ser
dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é
favor. Faça-lhe também elogios; ele gosta muito de ser elogiado. Dona Glória
presta-lhe atenção; mas o principal não é isso; é que ele , tendo de servir a
você, falará com muito mais calor que outra pessoa.
―
Não acho, não, Capitu.
―
Então vá para o seminário.
―
Isso não.
―
Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faça o que lhe digo. Dona Glória
pode ser que mude de resolução. ; se não mudar, faz-se outra cousa, mete-se então
o padre Cabral. Você não se lembre como é que foi ao teatro pela primeira vez,
há dous meses? Dona Glória não queria, e bastava isso para que José Dias não
teimasse; mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se?
―
Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.
―
Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos dous...
Ande, peça, mande. Olhe; diga-lhe que está pronto a ir estudar leis em São
Paulo.
Estremeci
de prazer, São Paulo era um frágil biombo, destinado a ser arredado um dia, em
vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometi falar a José Dias nos termos
propostos. Capitu repetiu-os, acentuando alguns, como principais; e inquiria-me
depois sobre eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E
insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de água
a pessoa que tem obrigação de o trazer. Conto estas minúcias para que melhor se
entenda aquela manhã de minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde
se fará o primeiro dia, como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete.
Machado
de Assis
Dom
Casmurro
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