sexta-feira, 27 de setembro de 2013

G. RAMOS


Chegou-se a nós um rapaz alto, esticado na farda, que se ofereceu para conduzir-nos ao nosso destino. A fala era branda, os modos corteses, de uma cortesia sem afetação, ligada com rigor ao homem, parecendo haver nascido com ele. A maneira como se apresentou, nos abriu a portinhola de um grande automóvel, dava-nos a impressão de que éramos hóspedes consideráveis levados ao hotel por um funcionário cerimonioso. E nenhuma palavra que de longe revelasse a nossa degradação. O investigador Tavares logo se eclipsou. Estranho. Aquela contradança me desorientava. Subordinara-me em vinte e quatro horas ao mulato rodopiante, ao oficial mudo, á sentinela, ao Tavares, ao rapaz atencioso. Surpreendia-me: imaginara que me trancassem a chave numa sala, me deixassem só ― e não me vira só um minuto. A vigilância contínua, embora exercida por uma estátua armada a fuzil ou por uma criatura amável em excesso, começava a angustiar-me. Isso e a instabilidade. Mal fechara os olhos numa leve sonolência, alguém me sacudira e soprara ao ouvido: “― Viajar”. Para onde? Essa idéia de nos poderem levar para um lado ou para outro, sem explicações, é extremamente dolorosa, não conseguimos familiarizar-nos com ela. Deve haver uma razão para que assim procedam, mas, ignorando-a, achamo-nos cercados de incongruências. Temos a impressão de que apenas desejam esmagar-nos, pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos cansados. Será necessária essa despersonalização? Depois de submeter-se a semelhante regime, um indivíduo é absolvido e mandam-no embora. Pouco lhe serve a absolvição: habituado a mover-se como se o puxassem por cordéis, dificilmente se libertará. Condenaram-no antes do julgamento, e nada compensa o horrível dano. Talvez as coisas devam ser feitas assim, não haja outro meio de realizá-las. De qualquer modo isso é uma iniqüidade ― e a custo admitiremos que uma iniqüidade ― e a custo admitiremos que uma iniqüidade seja indispensável. Aonde me transportariam? Àquela hora muitos sujeitos suspeitos estavam sendo paralisados, rolavam sobre pneumáticos silenciosos, navegavam do norte para o sul e do sul para o norte, resvalavam como sombras em longos corredores úmidos. E as autoridades resvalavam também, abafando os passos, oblíquas, tortuosas, com aparência de malfeitores.

Embarcamos, ziguezagueamos longamente na iluminação fraca do Recife. Achara-me ali vintes e dois anos antes, recolhido, enfermo, e ignorava a topografia da cidade: as ruas estreitas e sem nome nada me diziam do itinerário. A um lado, o meu companheiro dava-me palpites desprovidos de significação; no outro lado, o nosso guia, atento, digno, o busto ereto, quase se invisibilizava na penumbra do veículo. Começava a esboçar-se a terrível situação que ia perdurar: uma curiosidade louca a emaranhar-se em cordas, embrenhar-se em labirintos, marrar paredes, e ali perto o informe necessário, imperceptível nas linhas de uma cara enigmática e fria. Chegamos afinal diante de um vasto edifício, saltamos. E, lembrando-me da exigência da manhã, aproximei-me do chofer, abri a carteira, disposto a reduzir os cobres escassos.

― Ah! não! interpôs-se o nosso condutor. É um carro oficial.

Respirei aliviado. Atravessamos um portão, percorremos lugares que não me deixaram nenhum vestígio na memória, desembocamos numa saleta onde um sujeito em mangas de camisa bebia chá e mastigava torradas. Não se alterou com a nossa presença: continuou sentado à mesinha, diante da bandeja, e nem deu mostra de perceber a continência e algumas palavras indistintas do rapaz cortês. Pouco a pouco, inteirando-se de qualquer coisa, entrou a manifestar sinais de inquietação, jogando-nos de soslaio olhadelas descontentes. Tínhamos ido incomodá-lo, impacientava-se, murmurava uma recusa teimosa, falando para dentro, sem deixar de mastigar a torrada. O movimento dos queixos e o som abafado e monótono casavam-se de tal jeito que a recusa e a torrada pareciam confundir-se. E as migalhas economizadas voltavam à boca, juntavam-se às sílabas indecisas, tudo se moía num ronrom asmático. Não me chegava uma palavra, e o desagrado apenas se revelava no gesto arrepiado, no resmungo cavernoso. O moço fez nova continência, meia-volta, veio dizer-nos que não havia ali acomodações para nós.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. Viagens.
(obra póstuma).
José Olympio. Rio de Janeiro.

1ª edição. 1953.