Chegou-se
a nós um rapaz alto, esticado na farda, que se ofereceu para conduzir-nos ao
nosso destino. A fala era branda, os modos corteses, de uma cortesia sem
afetação, ligada com rigor ao homem, parecendo haver nascido com ele. A maneira
como se apresentou, nos abriu a portinhola de um grande automóvel, dava-nos a
impressão de que éramos hóspedes consideráveis levados ao hotel por um
funcionário cerimonioso. E nenhuma palavra que de longe revelasse a nossa
degradação. O investigador Tavares logo se eclipsou. Estranho. Aquela
contradança me desorientava. Subordinara-me em vinte e quatro horas ao mulato
rodopiante, ao oficial mudo, á sentinela, ao Tavares, ao rapaz atencioso.
Surpreendia-me: imaginara que me trancassem a chave numa sala, me deixassem só
― e não me vira só um minuto. A vigilância contínua, embora exercida por uma
estátua armada a fuzil ou por uma criatura amável em excesso, começava a
angustiar-me. Isso e a instabilidade. Mal fechara os olhos numa leve
sonolência, alguém me sacudira e soprara ao ouvido: “― Viajar”. Para onde? Essa
idéia de nos poderem levar para um lado ou para outro, sem explicações, é
extremamente dolorosa, não conseguimos familiarizar-nos com ela. Deve haver uma
razão para que assim procedam, mas, ignorando-a, achamo-nos cercados de
incongruências. Temos a impressão de que apenas desejam esmagar-nos,
pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos
cansados. Será necessária essa despersonalização? Depois de submeter-se a
semelhante regime, um indivíduo é absolvido e mandam-no embora. Pouco lhe serve
a absolvição: habituado a mover-se como se o puxassem por cordéis, dificilmente
se libertará. Condenaram-no antes do julgamento, e nada compensa o horrível
dano. Talvez as coisas devam ser feitas assim, não haja outro meio de
realizá-las. De qualquer modo isso é uma iniqüidade ― e a custo admitiremos que
uma iniqüidade ― e a custo admitiremos que uma iniqüidade seja indispensável.
Aonde me transportariam? Àquela hora muitos sujeitos suspeitos estavam sendo
paralisados, rolavam sobre pneumáticos silenciosos, navegavam do norte para o
sul e do sul para o norte, resvalavam como sombras em longos corredores úmidos.
E as autoridades resvalavam também, abafando os passos, oblíquas, tortuosas,
com aparência de malfeitores.
Embarcamos,
ziguezagueamos longamente na iluminação fraca do Recife. Achara-me ali vintes e
dois anos antes, recolhido, enfermo, e ignorava a topografia da cidade: as ruas
estreitas e sem nome nada me diziam do itinerário. A um lado, o meu companheiro
dava-me palpites desprovidos de significação; no outro lado, o nosso guia,
atento, digno, o busto ereto, quase se invisibilizava na penumbra do veículo.
Começava a esboçar-se a terrível situação que ia perdurar: uma curiosidade
louca a emaranhar-se em cordas, embrenhar-se em labirintos, marrar paredes, e
ali perto o informe necessário, imperceptível nas linhas de uma cara enigmática
e fria. Chegamos afinal diante de um vasto edifício, saltamos. E, lembrando-me
da exigência da manhã, aproximei-me do chofer, abri a carteira, disposto a
reduzir os cobres escassos.
―
Ah! não! interpôs-se o nosso condutor. É um carro oficial.
Respirei
aliviado. Atravessamos um portão, percorremos lugares que não me deixaram
nenhum vestígio na memória, desembocamos numa saleta onde um sujeito em mangas
de camisa bebia chá e mastigava torradas. Não se alterou com a nossa presença:
continuou sentado à mesinha, diante da bandeja, e nem deu mostra de perceber a
continência e algumas palavras indistintas do rapaz cortês. Pouco a pouco,
inteirando-se de qualquer coisa, entrou a manifestar sinais de inquietação,
jogando-nos de soslaio olhadelas descontentes. Tínhamos ido incomodá-lo,
impacientava-se, murmurava uma recusa teimosa, falando para dentro, sem deixar
de mastigar a torrada. O movimento dos queixos e o som abafado e monótono
casavam-se de tal jeito que a recusa e a torrada pareciam confundir-se. E as
migalhas economizadas voltavam à boca, juntavam-se às sílabas indecisas, tudo
se moía num ronrom asmático. Não me chegava uma palavra, e o desagrado apenas
se revelava no gesto arrepiado, no resmungo cavernoso. O moço fez nova
continência, meia-volta, veio dizer-nos que não havia ali acomodações para nós.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. Viagens.
(obra
póstuma).
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.