Passei
o dia a mexer-me do vagão para o restaurante, bebi alguns cálices de conhaque,
os últimos que me permitiriam durante longos meses. À noitinha percebi
construções negras num terreno alagado. Que seria aquilo?
―
Mocambos, informou Tavares.
Bem,
os célebres mocambos que José Lins havia descrito em Moleque Ricardo. Conheceria José Lins aquela vida? Provavelmente
não conhecia. Acusavam-no de ser apenas um memorialista, de não possuir
imaginação, e o romance mostrava exatamente o contrário. Que entendia ele de
meninos nascidos e criados na lama e na miséria, ele, filho de proprietários? Contudo
a narração tinha verossimilhança. Eu seria incapaz de semelhante proeza: só me
abalanço a expor a coisa observada e sentida. Tornaria esse amigo a compor
outra história assim, desigual, desleixada, mas onde existem passagens
admiráveis, duas pelo menos a atingir o ponto culminante da literatura
brasileira? Quem sabia lá? Agora morava no Rio, talvez entrasse na ordem,
esquecesse a bagaceira e a senzala, forjasse novelas convenientes para um
público besta, rico e vazio. Malucando assim, alcancei a estação de
Cinco-Pontas, peguei a valise e os três volumes, saltei na plataforma,
acompanhado pelo investigador, junto ao capitão Mata, que se derreava ao peso
da mala.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume. Viagens. (Obra póstuma).
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.