quarta-feira, 18 de setembro de 2013

G. RAMOS


Passei o dia a mexer-me do vagão para o restaurante, bebi alguns cálices de conhaque, os últimos que me permitiriam durante longos meses. À noitinha percebi construções negras num terreno alagado. Que seria aquilo?

― Mocambos, informou Tavares.

Bem, os célebres mocambos que José Lins havia descrito em Moleque Ricardo. Conheceria José Lins aquela vida? Provavelmente não conhecia. Acusavam-no de ser apenas um memorialista, de não possuir imaginação, e o romance mostrava exatamente o contrário. Que entendia ele de meninos nascidos e criados na lama e na miséria, ele, filho de proprietários? Contudo a narração tinha verossimilhança. Eu seria incapaz de semelhante proeza: só me abalanço a expor a coisa observada e sentida. Tornaria esse amigo a compor outra história assim, desigual, desleixada, mas onde existem passagens admiráveis, duas pelo menos a atingir o ponto culminante da literatura brasileira? Quem sabia lá? Agora morava no Rio, talvez entrasse na ordem, esquecesse a bagaceira e a senzala, forjasse novelas convenientes para um público besta, rico e vazio. Malucando assim, alcancei a estação de Cinco-Pontas, peguei a valise e os três volumes, saltei na plataforma, acompanhado pelo investigador, junto ao capitão Mata, que se derreava ao peso da mala.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. Viagens. (Obra póstuma).
José Olympio. Rio de Janeiro.

1ª edição. 1953.