Nem
era de não se saber que ele podia cantar e competia, por si, os assuntos ― que
era só alguém pedir, e ele desplantava de recitar, em qualquer dia de serviço,
ali no eirado, à beira de um cocho: ― “O
bicho que tem no campo, o melhor é sariema: que parece com as meninas, roxeando
as cor morena...” Sempre não sorria,
nunca, e mesmo rir não ria; teria constantemente receio de que o tomassem por
menos. Repetia ligeiro as coisas demoradas: ― “Suspiro rompe parede, rompe peito acautelado; também rompe coração,
trancado e acadeado...” Um que ouvindo, glosava: ― “Isso ele decifra de
idéia...” Mas não tirava de idéia, não, não desinventava. Aprendera, em
qualquer parte. Aqui e ali, pegara essas lérias, letras, alegres ou tristes,
pelas voltas do mundo, essas guardara, mas como tolas notícias. ― “Aí vem um rapazinho, calça preta, remendada:
é bestagem, rapazinho, que aqui não se arranja nada!...” Por umas e outras,
em nenhuma não se sentia que elas assoprassem da lembrança cenas passadas, que
fossem só dele, velho Camilo ― que já tinha sido moço, em outras terras, no
meio de tantas pessoas. ― “Minha cabeça tá doendo, meu corpo doença tem. Quem
curar minha cabeça, cura meu corpo também...” Aquilo era como se beber café
frio, longe da chapa da fornalha. O velho Camilo instruía as letras, mas que
não comportava por dentro, não construía a cara dos outros no espelho. Só se a
gente guardasse de retentiva cada pé-de-verso, então mais tarde era que se
achava o querer solerte das palavras, vindo de longe, dee dentro da gente
mesmo. ― “O bicho que tem no mato, o
melhor é pass’o-preto: todo vestido de luto, assim mesmo satisfeito...” As
quadras viviam em redor da gente, suas pessoas, sem se poder pegar, mas que
nunca morriam, como as das estórias. Cada cantiga era uma estória.
Como
as compridas estórias, de verdade, de reis donos de suas fazendas, grandes
engenhos e mais muitos pastos, todo gado, e princesas apaixonadas, que o canto
da mãe-da-lua numa vereda distante punha
tristonhas, às vezes chorando, e os guerreiros trajados de cetim azul ou
cor-de-rosa, que galopavam e rodopiavam em seus belos cavalos ― as estórias
contadas, na cozinha, antes de se ir dormir, por uma mulher. Essa, que morava
desperdida, por aí, ora numa ora noutra chapada ― o nome dela era a Joana
Xaviel.
Ela
recontava a estória de um Príncipe que tinha ido guerrear gente ruim, treis
longes da porta de sua casa, e fora ficando gostando de outro guerreiro, Dom
Varão, que era uma moça vestida disfarçada de homem. Mas Dom Varão tinha olhos
pretos, com pestanas muito completas, o coração do Príncipe não se errava, ele
nem podia mais prestar atenção em outra nenhuma coisa. Vai daí, foi perguntar
ao Pai e à Mãe dele, suplicar conselhos:
“Pai, ô minha Mãe, ô!
estou passado de amor...
Os olhos de Dom Varão
é de mulher,de homem não!”
A
Rainha ensinava ao filho seguidos três estratagemas, astúcia por fazer Dom Varão esclarecer o sexo pertencido. Quando sucedia esse final, o Príncipe e a
Moça se casavam, nessas glórias, tudo dava acerto.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile. Volume 1.
Edição
comemorativa dos 50 anos
(1956
– 2006).
Nova
Fronteira. Rio de Janeiro, RJ.