Quando nos vimos sós, abri a
valise, retirei objetos necessários, despi-me lentamente, os braços pesados,
estendi a roupa no encosto de uma cadeira, vesti um pijama. O capitão Mata
vencera a loquacidade e acomodava-se à pressa, metódico, cochichando-me
reparos, porque tinha chegado a hora do silêncio e as expansões se tornavam
impossíveis. Ultimados os arranjos, estabelecidas as coisas nos lugares
convenientes, despediu-se, apagou a luz, deitou-se na cama de ferro posta a um
canto da sala estreita, ao pé da entrada, e adormeceu logo. A minha cama, do
outro lado, ao fundo, ficava junto a uma janela aberta sobre um pátio cheio de
sombras. Na parede onde o meu companheiro se encostava, uma porta fechada; em
frente, uma janela, também fechada. Não sei onde lavei as mãos e o rosto, esqueci
pormenores, ignoro se havia água encanada ou lavatório com jarro. Uma mesinha,
duas cadeiras, só.
Deitei-me, fiquei a virar-me
e a revirar-me no lençol dobrado, tentando em vão chamar o sono. Realmente não
posso dizer se dormia ou velava: feriam-me os sentidos uma faixa alvacenta que
me banhava os travesseiros, o vulto indeciso do capitão, a mesinha, as
cadeiras, a sentinela encostada ao fuzil, no alpendre, nova sentinela a
amofinar-se no serviço cacete; mas às vezes tudo se embrulhava, entre as visões
concretas esboçavam-se fantasmagorias ― e era-me impossível saber onde me
achava, porque me estirava no colchão alheio, depois de solavancos infinitos em
estrada de ferro. A minha vida anterior se diluía, perdia-se além daquele
imenso espaço de vinte e quatro horas. Um muro a separar-me dela, a altear-se,
a engrossar, e para cá do muro ― nuvens, incongruências. Entre esses farrapos
de realidade e sonho, era doloroso pensar numa inteira despersonalização. Como
iria reagir às ocorrências imprecisas que me aguardavam? As imagens vagas
misturadas aos móveis sumiram-se, despertei completamente e foi impossível
conservar, no calor, a posição horizontal.
Ergui-me, tateei a roupa no
encosto da cadeira, tirei dos bolsos cigarros e fósforo, debrucei-me à janela,
fiquei longamente a olhar o pátio escuro, fumando. Como iria comportar-me? Se
me dessem tempo suficiente para refletir, ser-me-ia possível juntar idéias,
dominar emoções, ter alguma lógica nos atos e nas palavras, exibir a aparência
de um sujeito mais ou menos civilizado. Mas na situação nova que me impunham,
fervilhavam as surpresas, e diante delas ia decerto confundir-me, disparatar,
meter os pés pelas mãos. Ali em baixo, a alguns metros de distância, dois
vultos, ladeando um portão, semelhavam pessoas embuçadas, gigantes embuçados.
Que seriam? Pilares? Deviam ser pilares. Afastei-me, passeei cauteloso,
abafando os passos, temendo esbarrar nas cadeiras.
Experimentei dormir. A
sentinela continuava sob o alpendre, na firmeza inútil, vendo-me ocupar e
abandonar a cama inútil. Avizinhei-me da janela, arredei-me, estive longas
horas a mover-me à toa na jaula sombria.
O peso que a princípio
sentira nos membros desaparecera: agitava-me agora desordenadamente, e em vão
procurava atordoar-me e cansar. Aguçavam-me a curiosidade os vultos que
guardavam o portão. Seriam guaritas? Não: para guaritas eram muito altos e
muito esguios. Que significam pois? Essa pergunta me arreliava. Se não
conseguia divisar aqueles objetos volumosos expostos aos meus olhos, como
adivinhar as sutilezas provavelmente escondidas em toda a parte, como alçapões?
Naquela vida era preciso em certo momento um homem virar-se para a direita,
virar-se para a esquerda, levantar-se, baixar-se, e a falta de um gesto
implicava censura. Esquecera-me desses movimentos, aprendidos em poucos meses
de exercício relaxado e capenga. Na presença de um oficial superior, derrear-me-ia,
uma perna bamba, a outra a agüentar o corpo todo, pregaria o cotovelo num
peitoril. Envergonhar-me-ia ao notar o desconchavo, encolher-me-ia, largaria
sandices comprometedoras. Em horas de perturbação era-me impossível dominar a
língua: dizia coisas impensadas, às vezes contrárias ao que era preciso dizer.
Receava prejudicar alguém. Iria qualquer afirmação doida transformar-me em
delator, levar à cadeia rapazes inofensivos que tencionavam eliminar a
burguesia distribuindo às escondias nos cafés papéis mimeografados? Um deles,
Jacob, figurava no meu último livro com o nome de Moisés. Encarregava-se de
receber as prestações na venda do tio, judeu verdadeiro. Não recebia nada: dava
aos fregueses opiniões incendiárias, folhas volantes vermelhíssimas, o que lhe
rendia, segundo afirmavam, abundantes surras do patrão. Talvez Jacob estivesse
guardado a chave. E meus filhos mais velhos, da Juventude Comunista, pichadores
de paredes, provavelmente andavam perseguidos, a esconder-se. Ultimamente,
haviam arranjado uma espécie de revista, enviado cem números para Moscou e
cinqüenta para Madri. Um escândalo. E como Plínio Salgado recebera uma vaia formidável
no teatro Deodoro e fugira pelos fundos do palco sem piar, enquanto a milícia
verde se alvoroçava no saguão, saltava grades, deixava camisas em pontas de
ferro, um ressentimento amargo se concentrava nessas alminhas, contra rapazes
do liceu, operários, soldados e cabos do exército. Eram todos agora
denunciados, com certeza. Apavorava-me supor que uma indiscrição minha poderia
fornecer aos carcereiros uma pista. Realmente não me informara de quase nada,
eles deviam saber muito mais que eu, mas talvez uma indicação lhes fosse útil.
O pormenor insignificante reforçaria provas, constituiria o elo necessário a
uma cadeia interrompida. . É desses pequeninos grãos que a polícia constrói os
seus monumentos de misérias. Qual seria a minguada contribuição que exigiriam
de mim? Esforçava-me por adivinhá-la e guardá-la com avareza; no
interrogatório, desviar-me-ia das ciladas, referir-me-ia com ar culposo,
misteriosamente, a casos diversos e inofensivos. Difícil era descobrir aonde me
queriam levar, que valor me atribuíam. Inadmissível achar-me ali por vingança
de um energúmeno qualquer: isto seria anti-econômico, disparatado, e sem dúvida
o país ainda não chegara a tal grau de estupidez e malandragem.
Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. Viagens.
(Obra póstuma).
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1953.