domingo, 13 de outubro de 2013

G. RAMOS


Quando nos vimos sós, abri a valise, retirei objetos necessários, despi-me lentamente, os braços pesados, estendi a roupa no encosto de uma cadeira, vesti um pijama. O capitão Mata vencera a loquacidade e acomodava-se à pressa, metódico, cochichando-me reparos, porque tinha chegado a hora do silêncio e as expansões se tornavam impossíveis. Ultimados os arranjos, estabelecidas as coisas nos lugares convenientes, despediu-se, apagou a luz, deitou-se na cama de ferro posta a um canto da sala estreita, ao pé da entrada, e adormeceu logo. A minha cama, do outro lado, ao fundo, ficava junto a uma janela aberta sobre um pátio cheio de sombras. Na parede onde o meu companheiro se encostava, uma porta fechada; em frente, uma janela, também fechada. Não sei onde lavei as mãos e o rosto, esqueci pormenores, ignoro se havia água encanada ou lavatório com jarro. Uma mesinha, duas cadeiras, só.

Deitei-me, fiquei a virar-me e a revirar-me no lençol dobrado, tentando em vão chamar o sono. Realmente não posso dizer se dormia ou velava: feriam-me os sentidos uma faixa alvacenta que me banhava os travesseiros, o vulto indeciso do capitão, a mesinha, as cadeiras, a sentinela encostada ao fuzil, no alpendre, nova sentinela a amofinar-se no serviço cacete; mas às vezes tudo se embrulhava, entre as visões concretas esboçavam-se fantasmagorias ― e era-me impossível saber onde me achava, porque me estirava no colchão alheio, depois de solavancos infinitos em estrada de ferro. A minha vida anterior se diluía, perdia-se além daquele imenso espaço de vinte e quatro horas. Um muro a separar-me dela, a altear-se, a engrossar, e para cá do muro ― nuvens, incongruências. Entre esses farrapos de realidade e sonho, era doloroso pensar numa inteira despersonalização. Como iria reagir às ocorrências imprecisas que me aguardavam? As imagens vagas misturadas aos móveis sumiram-se, despertei completamente e foi impossível conservar, no calor, a posição horizontal.

Ergui-me, tateei a roupa no encosto da cadeira, tirei dos bolsos cigarros e fósforo, debrucei-me à janela, fiquei longamente a olhar o pátio escuro, fumando. Como iria comportar-me? Se me dessem tempo suficiente para refletir, ser-me-ia possível juntar idéias, dominar emoções, ter alguma lógica nos atos e nas palavras, exibir a aparência de um sujeito mais ou menos civilizado. Mas na situação nova que me impunham, fervilhavam as surpresas, e diante delas ia decerto confundir-me, disparatar, meter os pés pelas mãos. Ali em baixo, a alguns metros de distância, dois vultos, ladeando um portão, semelhavam pessoas embuçadas, gigantes embuçados. Que seriam? Pilares? Deviam ser pilares. Afastei-me, passeei cauteloso, abafando os passos, temendo esbarrar nas cadeiras.

Experimentei dormir. A sentinela continuava sob o alpendre, na firmeza inútil, vendo-me ocupar e abandonar a cama inútil. Avizinhei-me da janela, arredei-me, estive longas horas a mover-me à toa na jaula sombria.

O peso que a princípio sentira nos membros desaparecera: agitava-me agora desordenadamente, e em vão procurava atordoar-me e cansar. Aguçavam-me a curiosidade os vultos que guardavam o portão. Seriam guaritas? Não: para guaritas eram muito altos e muito esguios. Que significam pois? Essa pergunta me arreliava. Se não conseguia divisar aqueles objetos volumosos expostos aos meus olhos, como adivinhar as sutilezas provavelmente escondidas em toda a parte, como alçapões? Naquela vida era preciso em certo momento um homem virar-se para a direita, virar-se para a esquerda, levantar-se, baixar-se, e a falta de um gesto implicava censura. Esquecera-me desses movimentos, aprendidos em poucos meses de exercício relaxado e capenga. Na presença de um oficial superior, derrear-me-ia, uma perna bamba, a outra a agüentar o corpo todo, pregaria o cotovelo num peitoril. Envergonhar-me-ia ao notar o desconchavo, encolher-me-ia, largaria sandices comprometedoras. Em horas de perturbação era-me impossível dominar a língua: dizia coisas impensadas, às vezes contrárias ao que era preciso dizer. Receava prejudicar alguém. Iria qualquer afirmação doida transformar-me em delator, levar à cadeia rapazes inofensivos que tencionavam eliminar a burguesia distribuindo às escondias nos cafés papéis mimeografados? Um deles, Jacob, figurava no meu último livro com o nome de Moisés. Encarregava-se de receber as prestações na venda do tio, judeu verdadeiro. Não recebia nada: dava aos fregueses opiniões incendiárias, folhas volantes vermelhíssimas, o que lhe rendia, segundo afirmavam, abundantes surras do patrão. Talvez Jacob estivesse guardado a chave. E meus filhos mais velhos, da Juventude Comunista, pichadores de paredes, provavelmente andavam perseguidos, a esconder-se. Ultimamente, haviam arranjado uma espécie de revista, enviado cem números para Moscou e cinqüenta para Madri. Um escândalo. E como Plínio Salgado recebera uma vaia formidável no teatro Deodoro e fugira pelos fundos do palco sem piar, enquanto a milícia verde se alvoroçava no saguão, saltava grades, deixava camisas em pontas de ferro, um ressentimento amargo se concentrava nessas alminhas, contra rapazes do liceu, operários, soldados e cabos do exército. Eram todos agora denunciados, com certeza. Apavorava-me supor que uma indiscrição minha poderia fornecer aos carcereiros uma pista. Realmente não me informara de quase nada, eles deviam saber muito mais que eu, mas talvez uma indicação lhes fosse útil. O pormenor insignificante reforçaria provas, constituiria o elo necessário a uma cadeia interrompida. . É desses pequeninos grãos que a polícia constrói os seus monumentos de misérias. Qual seria a minguada contribuição que exigiriam de mim? Esforçava-me por adivinhá-la e guardá-la com avareza; no interrogatório, desviar-me-ia das ciladas, referir-me-ia com ar culposo, misteriosamente, a casos diversos e inofensivos. Difícil era descobrir aonde me queriam levar, que valor me atribuíam. Inadmissível achar-me ali por vingança de um energúmeno qualquer: isto seria anti-econômico, disparatado, e sem dúvida o país ainda não chegara a tal grau de estupidez e malandragem.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume. Viagens.
(Obra póstuma).
José Olympio. Rio de Janeiro.

1ª edição. 1953.