segunda-feira, 21 de outubro de 2013

G. RAMOS


Aquela mão indistinta, lá em baixo, entre as duas colunas, era provavelmente um portão. Seriam colunas? Na verdade a iluminação de Recife, vacilante, deixava-me na ignorância. Conservei-me longamente arrimado ao peitoril, interrogando as trevas, aguçando o ouvido à procura de seus informadores: pedaços de conversas, pancadas de relógio. Nenhum sinal me orientava; a noite preguiçosa a arrastar-se; impossível saber se me achava no princípio ou no fim dela. Na verdade o tempo não era o que havia sido: tornara-se confuso e lento, cheio de soluções de continuidade, e nesses hiatos vertiginosos perdia-me, escorregava, os olhos turvos, numa sensação de queda ou vôo. Náuseas, aperto no diafragma. Evidentemente se tudo em redor me parecia vago e incompreensível, se até a noção de tempo se modificava, cá dentro deviam as coisas passar-se de maneira lastimosa, esta velha máquina emperrava. Sem dúvida. Inquietava-me perceber que me havia tornado, naquela pausa singular, estúpido em demasia. A atenção embotada, saltava freqüentemente de um assunto para outro, sem conseguir estabelecer a mais simples relação entre eles, e às vezes ficava a doidejar, a rodear pormenores, como peru, tentando decifrar insignificâncias.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º vol. Viagens.
José Olympio. Rio de Janeiro.

1ª edição. 1953.