Que
seriam os dois vultos que vigiavam lá em baixo o portão? Esta pergunta,
reproduzida, chateava-me; contudo não podia desembaraçar-me dela, misturava-a
sem propósito às complexidades imponderáveis que me atenazavam. Naquela
desordem, naquele cipoal de pensamentos emaranhados, avultava uma
incongruência, mas isto só mais tarde foi percebido: sentia-me vítima de
injustiça, queixava-me de inimigos indecisos, parecia-me descobrir nos lençóis,
no peitoril da janela, na água da moringa e no ar corrução e veneno;
contraditoriamente, achava-me em segurança, considerava a existência anterior
bem mesquinha, pior talvez que a prisão. Quando me viesse calma,
aventurar-me-ia a fazer um livro, lentamente, livre das aporrinhações normais.
Viria a calma? E quantos dias ou meses me deixariam naquela situação? Era
disparate desejar permanecer nela, mas assaltava-me uma grande covardia, o
receio de voltar a assumir responsabilidades, a certeza de que o meu trabalho
de indivíduo solitário, na ditadura mal disfarçada por um congresso de sabujos,
seria pouco mais ou menos inútil. Preferível o cativeiro manifesto ao outro,
simulado, que nos ofereciam lá fora. A idéia de escrever o livro voltava com
insistência. Cada vez mais, porém, me convencia de que, persistindo aquela
enorme burrice, não escreveria coisa nenhuma. Mas observaria fatos e pessoas
que me despertavam curiosidade. Agora estava certo de que não me largariam
dentro de uma semana, como havia suposto. As vaidadezinhas malucas de
pequeno-burguês sumiam-se. Decerto me guardariam, possivelmente me poriam em
contacto com alguns criminosos, pessoas que, interessando-me de mais, até então
me haviam aparecido em tratados ou de longe. Conhecimento imperfeito, sumário.
E mostrar-me-iam os revolucionários de Natal, do 3º Regimento, da Escola de
Aviação. Até certo ponto podia considerar-me uma espécie de revolucionário,
teórico e chinfrim. Sorria-me a perspectiva de olhar de perto revolucionários
de verdade, que ultimamente eram presos em magotes.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
vol. Viagens. (Obra póstuma).
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.