quarta-feira, 30 de outubro de 2013

UM APRENDIZ DE FEITICEIRO


CONTO DE AMOR: CINZA E VERMELHO

Ela estava meiga e gentil para com ele, naquela tarde fria e lavada de fins de dezembro. Passeavam no parque de Belo Horizonte, um recanto livre  de beleza construída, ao lado do pequeno rebuliço da cidade-rosa-mal-aberta. Mas, como dizia, era meiga e gentil para com ele. Ela estava meiga e gentil. Mas, e ele? Ah, ele tinha cinza o coração, cinza como o céu daquela tarde. Entretanto, é bem certo que uma nesga de esperança se recortava, um tanto ou quanto preguiçosa, naquele seu sorriso positivamente cético. Ele usava um terno cinza. Ela um vestido vermelho. E vinham caminhando pelo parque. Liricamente. Não se pode esconder que um pouco sensualmente também. Pelo menos ele. Ela, até que não. Cochichavam, como se cochicha por vielas de parques, em tardes frias e lavadas de fins de dezembro.

Quem eram eles, ela e ele? Ah, pergunta misteriosa esta. Quem poderia dizer quem eram eles, ela e ele? É bem verdade que tenho um amigo que o diria. Mas ando muito sem tempo ― os dias são, não, não são curtos, mas passam tão depressa! ― ando muito, muito ocupado mesmo para procurá-lo. Digamos pois: ele era um vagabundo e ela, uma prostituta.

― Um vagabundo e uma prostituta!

E lá iam eles pelas vielas escuras da já meio exaustiva tarde fria e lavada de fins de dezembro. Mas que posso fazer? Estou muito alegre, tão alegre! Eu gostaria bastante, é claro, de contar uma doce história de amor, em que a prostituta fosse uma virgem apaixonada e o vagabundo, um mocinho jamais derrotado, roubando-a no seu cavalo, um cavalo bem lírico. Mas eu estou muito alegre. Estou desesperadamente alegre e, por isso, a verdade me importuna e eu tenho de buscá-la, de encontrá-la nos homens esfarrapados de vestes e almas. Além disto, esqueci, esqueci quando andava por Oblívion, esqueci aquele gesto: um discóbolo lançando o seu disco, porque deve ter sido assim que o meu amigo fez o seu poema: fez uma bola, uma bola pequena e lançou-a, como fazem os discóbolos, e a bola então se abriu e apareceu tudo isto que é belo: um rei de cabelo assanhado e que faz caretas enquanto corre pelo céu e ele corre todos os dias e tem também uma de cara muito fria, que me disseram ter o nome (tão tolo!) de dama da noite, eu vi também um diamante, mas não contudo mais bonito que o do olhar da minha amada. É por isto que não posso arranjar uma doce história de amor com a minha prostituta e o meu vagabundo. É bem verdade que eles são personagens meus, criaturas minhas, geradas no meu seio desde a minha infância eterna. Poderia, pois, (e talvez o faça), poderia, pois, muito bem fazê-los se amarem, com o amor  mais descabelado e antropofágico, e, depois, mergulhá-los na tragédia. Ah, mas um bom criador cria sempre a liberdade! É por isto que os meus personagens de mim recebem apenas o ser, o mais, a sua conduta, eles mesmos a ditam. Não posso negar que a mim me apraz vê-los viver segundo a alegria, para poder reuni-los à minha vida mais íntima, quase que incorporando-os a mim, como secretários do meu mundo submerso, onde só vivemos eu e a minha amada, com seu bi-pélago-diamante-olhar (que diadema!). Mas como sabemos, pelo canto do galo, que começar não é nada e recomeçar é a suma, recomecemos, portanto. Ela estava meiga e gentil para com ele. Ele usava um terno cinza. Ela, um vestido vermelho. E vinham caminhando pelo parque. Liricamente. De repente, ele se virou para ela e disse:

― Eu sempre gostei de tipos que choram. É por isto que amo as mulheres e as crianças e os crocodilos também. Não! os crocodilos, não! Que coisa feia, meu Deus! Ah, se você soubesse, prostituta! Está vendo aquela estrela brilhando, lá no sem-fim? Quantas vezes não pensei: como é feliz aquela estrela! Ela tem luz própria, esquenta-se a si mesma, está sempre quente, quentinha, por ter o amor em si. Todas elas, todas têm (a não ser uma, que uma vez esfriou: a minha aldebarã, noiva do sete-estrelo e que se tomou de amores por um querubim cigano, o qual cigano virou sorvete)! Pois é! as estrelas estão sempre quentinhas, que nem um pão na boca de forno, forno, me dá um bolo, bolo, ó prostituta chorosa na tarde fria e lavada. Mas nós outros!... nós somos tristes planetas em busca de uma andrômeda qualquer. Mas eu, que sou filho do Rei, eu também ― hélas! eu... também... ― eu te encontrei, ó minha pobre estrela decadente. Você bem sabe que cada planeta só deveria encontrar uma estrela. Mas alguns, talvez por preguiça, se deixam enamorar em conjunto por uma só estrela que os atrai. É o caso deste astro em que vivemos, com seus astros companheiros. Mas você bem sabe que não sou um preguiçoso. O que eu sou é um vagabundo. E o vagabundo é um homem que perdeu suas virtudes. Todas. Menos uma: a laboriosidade. O vagabundo, vagamundo, persegue um ideal. É por isto que sou um vagabundo convicto e revolucionário. Eu prego a vagabundagem com sua soberana invalidez. Invalidez para tudo, menos para uma só coisa: para a glória. Ela nos faz grandes. Cantemos em odes profanas a sagrada vagabundagem dos santos e dos bardos e vomitemos no sepulcro azedo da burguesia, onde milita a contra-vagabundagem.

E foi aí que ela falou:

― Ó meu belo animalzinho selvagem, eu tenho também uma história para lhe contar. Era uma vez uma meninazinha magrinha, magrinha, que foi engordando, engordando e um dia, bem um dia lhe disseram: menina, tu tá muito bela, e pois vamos amar. E horizontal e verticalmente nós nos amamos. Foi uma só noite, uma só, que todas as mais numa só se fundiram. Uma longa noite de amor e mistério sonolento. Como gatos em volúpia ao sol matinal. Uma festa profunda e ritual, bárbara e fúnebre, já que antropofágica, mas vital, saudável e quase litúrgica. Foi assim um mês e pouco, nas praias de um rio, no fundo da mata, vizinhanças do casebre, no casebre mesmo, lá pelas lindes baianas. E assim vivemos e assim morremos. Um dia, ele montou seu baio e trepou na montanha, quando o sol que morria o arrebatou com seu fogo, com seu canto sideral. Depois, depois a vida e o nome rapariga impresso em arco-íris, as sete cores da solidão. E mais depois ainda, Belo Horizonte, com suas ruas tristonhas de feijão e sonho. Sonho, bem entendido, sonho-pesadelo. Pesadelo quase sempre, que havia sonho também. Pois então eu entendi de criar um príncipe meu, vestido de azul, que fosse vagabundo e amasse cantar frases desconexas e bonitas, seguindo pelos caminhos da aurora. Que a todos amasse. Mesmo aos capitalistas. É claro, bem claro, que eu sabia ser sonho este sonho meu. E agora, meu pato selvagem de mundos solitários, agora vê você que a minha história é triste. Tão triste!
...............................................................................................................................
E lá se foram eles. Ela estava meiga e gentil. Era uma tarde fria e lavada de fins de dezembro. Havia cinzas esparsos pelo céu. E ele tinha o coração vermelho como uma poça de sangue. O vestido dela então ficou tão branco! Cochichavam. E se foram. Muito, mesmo. E eu, que a tudo estive presente, fiquei só. E então achei que Deus era bom. Mas vamos todos em coro, eu você, todos os leitores, entoar uma canção que diga assim: isto é sem fim, sem fim, sem fim...



1958.