O
INVENTÁRIO
Peço
a um amigo que me ajude neste transe melancólico; aluguei uma casa mobiliada, e
o velho casal de proprietários fez uma lista de seus trecos para eu conferir. A
lista é minuciosa e, por isso, imensa; são mil grandes e pequenas coisas, duas
marquesas, um quadro a carvão representando São Francisco de Assis (mas o
desenho é ruim e o santo está gordo), uma horrível, incomodíssima cômoda de
metal, dois “choapinos”, um espelho quadrado que agora será visitado pela minha
cara e talvez por hábito me faça meio parecido com esse velho chileno que sofre
do coração.
Ah,
sim, o piano. O vellho quer levar o antigo piano alemão; resisto; quero o
piano, não sei tocar, mas me agrada ter em casa um piano; não seria possível
deixar o piano? Os velhos se consultam; sim, ficará o piano. Em compensação há
essa absurda mesa de pôquer que eles insistem em deixar, enorme, horrível,
esses quadros a óleo detestáveis que eles elogiam tanto e que eu meterei todos
dentro de um armário, um tinteiro de cobre, uma estatueta japonesa, coisas antigas
como um violetero onde jamais
colocarei violetas, um licoreiro que nunca verá licor, um paragüero que sonha com os guarda-chuvas dantanho, e essa feia mesita ratona, e essas coisas inúteis de
metal e cristal, o relógio de cuco com o passarinho sempre cantando errado,
pobre passarinho extraviado no tempo...
A
lista é terrivelmente minuciosa; eu terei de apresentar, ao sair desta casa,
tantos ganchos de pendurar roupa e tantos cinzeirinhos de cobre; e já que
insisti pelo piano, tenho de me conformar com a presença de um enorme e
sinistro mueble musiquero, onde se
guardam velhos tangos e valsas.
Meu
amigo confere cas coisas, de lista na mão, e a velha vai repetindo os nomes e
apontando os objetos, numa ladainha interminável; bocejo no meio de meu reino
desordenado e precário; uma a uma terei de entregar um diaa todas essas coisas
de volta a esses velhos; e para eles são coisas de certo modo sagradas, com o
longo contato de seus olhos e de suas mãos, coisas de suas vidas que
incorporaram minutos e anos, lembranças, palavras, emoções. Bocejo, depois
fumo; nego-me a examinar, como eles gostariam , o detalhe de cada coisa, e
minha indiferença parece que vagamente os ofende. Creio que sentem no fundo da
alma um ódio deste estranho que vai morar em sua casa, com suas coisas; sou um
intruso, o mais antipático dos intrusos, o intruso que paga o direito de ser
intruso. E então eles ficam mais minuciosos, gastam meia hora para acrescentar
na lista algumas coisinhas sem importância que tinham omitido, são avaros do
que me alugam...
Partem.
Chego à janela, vejo-os que fecham com
todo o cuidado o portão. E sorrio. Esses velhos são uns insensatos. Arrolaram
centenas de cacarecos inúteis e se esqueceram do mais importante, do que me
atraiu a esta casa, dos bens sem preço que um vândalo poderia destruir e,
entretanto, não estão no inventário; daqueles bens que, se sumissem, fariam
esses dois velhos desfalecer de espanto e dor; o que eles não compraram com
dinheiro, mas com o longo amor, o longo, cotidiano carinho: as árvores altas,
belas, ainda úmidas da chuva da noite, brilhando, muito verdes, ao sol.
Santiago,
abril, 1955.
Rubem
Braga
Ai
de Ti, Copacabana
Sabiá,
Rio de Janeiro, 5ª edição, 1969.