sábado, 23 de março de 2013

DE DIANTE PRA TRÁS



Saiba o senhor: eu estava ali, assim em padastro de todos, de do ar, de rechego, feito que em jirau-de-espera, para castigar onça assassinã. Vi ou não vi? Só espreitei. Dono do que lucrei, de espreitar. Uns deles, num terreiro acolá, manobravam a gosto, nas más armas. Assestei. Um era um sujeitão, muito baiano nos trajes. Do gatilho do rifle, no triz, me mandei nele. Aquele caiu torto; o outro completou. Assim eram três: o derradeiro percebeu que tinha céu, dando gambetas. Zumba! levou não sei quantas esburacadoras, na tampa de suas costas... Ah, ali valia; donde que eu estava. Ao mesmo quando revingaram, com umas descargas, despejadas. Dei atrás, mas sobranceei, de talaia. Fazia bem duas horas que aquela batalha tinha principiado. Se estava no poder do meio-dia.

De graça berra é o boi, tirante a vaca. Dessa daquela vez, tudo não acabava sem um fim ― ferrado que o Hermógenes não era cão de desmorder os dentes; e levinha cinqüenta léguas! Toada tinha de ter um prazo. E há um vero jeito de tudo se contar ― uma vivença dessas? Os tiros, gritos,eco, baque boléu, urros nos tiros e coisas rebentáveis. Dava até silêncio. Pois porque variava, naquele compasso: que bater, papocar, lascar, estralar e trovejar ― truxe― cerrando fogo; e daí marasmar, o calado de repente, ou vindo aos tantos se esmorecendo, de devagar. Tempo que me mediu. Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar ― tem uma coisa! ―: eu vejo é o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da morte: imperfeição. Bobices minhas ― o senhor em mim não medite. Mas, sobre uns assuntos assim, reponho, era que eu almejava ter perguntado a Diadorim, na véspera, de noite, conforme quando com ele passeei. Naquela hora, eu cismasse de perguntar a Diadorim:

― “Tu não acha que todo o mundo é doido? Que um só deixa de doido ser é em horas de sentir a completa coragem ou o amor? Ou em horas em que consegue rezar?”

Não indaguei. Mas eu sabia que Diadorim havia de me dar resposta:

― “Joca Ramiro não era doido nenhum, Riobaldo; e, ele, mataram..”

Então, eu podia, revia:

― “...Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia... O Urucuia, perto da barra, também tem belas croas de areia, e ilhas que forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da saudade ― jaburu e galinhol e garça-branca, a garça-rosada que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher... E o manuelzinho-da-croa, que pisa e se desempenha tão catita ― o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...”

Podia ser? Impossivelmente.

Eu não tinha sido capaz de perguntar aqueles ensalmos a Diadorim, de fato só em coisa à-toa se conversou, trivial a respeito de munição e meus armamentos, e avio de guerra. Véspera. As horas é que formam o longe. Mas, agora, ali, em ocasiões de morte, eu repisei; e, mesmo, amontado no momento, que era que eu ia dizer a Diadorim, se perto de mim ele parasse? Hoje, não sei. Não soubesse , naqueles adiantes. Ali, por onde eu estava, eu marcava muito suave a mão da morte; feito um boiadeiro, que, em janela ou porta, ou tábua de curral ou parede de casa, por todas as partes por onde anda, carimba remarcada a amostra do ferro dele de seu gado, para se conhecer. Assim. Como lembro, que eu tinha uma dor-de-cabeça; era uma dor-de-cabeça forte, fincada num ai só, furante de verrumas. Agüentei. Devia de ser da sede.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.