Mesmo
tinha viajado de vir ali, estúrdio, um homem-bicho, para vislumbrar a festa! O
João Urugem, que nunca ninguém enxergava no normal, que não morava em vereda,
nem no baixio, nem em chapada, mas vevia solitário, no pé-da-serra. Desde não
se sabia mais, desde moço, quando o acusaram de um furto, que depois se veio a
expor que ele não executara ― tinha ido viver sozinho no pé-de-serra, onde faz
casa nas grotas e as corujas escolhem sombra, onde há monte de mato, essas
pedras com limo muito molhado, fontes, minadouros de água que sobe da terra aos
borbos, jorra tesa, com força, o inteiro ano. João Urugem, que morava numa
choupana em árvores e moitas, que os degraus de sete lajedos ― cada laje mais
larga e chata ― separavam da beira da lagoa, onde o jacaré-de-cabeça-azulada
põe o focinho fora d’água, quando o sol sai tarde, e espirra mau-agouro e olha
mau-olhado. João Urugem fedia a mijo de cavalo. Viera de lá, por conta da festa
da capela ― isto se entendia. Ele não sabia mais falar corretamente com os
outros, parece que chorava pensando que estava se rindo. Pegara por lá essa
doença de malcheirar, quem sabe também o que ele não comia? Já não devia de se
lembrar mais da culpa do furto, se esquecera. Olhado do jacaré. Quem se
aproximava para ver o toco da língua dele jacaré, ele devorava a memória da
cabeça da pessoa. João Urugem sentava no chão, punha as palmas da mão abertas
encostadas em terra, que nem para se esquentar ou esfriar. Tinha os olhos cor
de água, igual os dos grandes cachorros onceiros de um homem na Vereda do
Liroliro. Diziam que ele não saía daquele lugar no pé-da-serra, porque lá tinha
achado uma mina de ouro, não queria que ninguém tomasse. Daquelas brenhas sai é
o gavião-pe-de-serra, que é o maior de todos, roxo-escuro, peito branco, muito
grande, unhas grandes, se diz que é a águia; esse gaviãozão, ele roda por
Gerais, por Baixio, mas mora mesmo é no pé-de-serra, em paredões de montanha:
de lá vem voando, o corpo todo cheio de ar. E pois, aquele João Urugem, por um
assombroso, conseguira ter informação da festa, e agora estava ali, na Samarra,
se aposentando no matinho para lá dos currais. Mesmo assim, os cachorros
estranhavam o indício dele, iam para lá, latir. João Urugem tinha ajuntado
perto de si um monte de pedras, jogava nos cachorros quando precisava.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
Corpo
de Baile, volume I
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.