sábado, 30 de março de 2013

EMANUEL E FEDERICO



Mesmo tinha viajado de vir ali, estúrdio, um homem-bicho, para vislumbrar a festa! O João Urugem, que nunca ninguém enxergava no normal, que não morava em vereda, nem no baixio, nem em chapada, mas vevia solitário, no pé-da-serra. Desde não se sabia mais, desde moço, quando o acusaram de um furto, que depois se veio a expor que ele não executara ― tinha ido viver sozinho no pé-de-serra, onde faz casa nas grotas e as corujas escolhem sombra, onde há monte de mato, essas pedras com limo muito molhado, fontes, minadouros de água que sobe da terra aos borbos, jorra tesa, com força, o inteiro ano. João Urugem, que morava numa choupana em árvores e moitas, que os degraus de sete lajedos ― cada laje mais larga e chata ― separavam da beira da lagoa, onde o jacaré-de-cabeça-azulada põe o focinho fora d’água, quando o sol sai tarde, e espirra mau-agouro e olha mau-olhado. João Urugem fedia a mijo de cavalo. Viera de lá, por conta da festa da capela ― isto se entendia. Ele não sabia mais falar corretamente com os outros, parece que chorava pensando que estava se rindo. Pegara por lá essa doença de malcheirar, quem sabe também o que ele não comia? Já não devia de se lembrar mais da culpa do furto, se esquecera. Olhado do jacaré. Quem se aproximava para ver o toco da língua dele jacaré, ele devorava a memória da cabeça da pessoa. João Urugem sentava no chão, punha as palmas da mão abertas encostadas em terra, que nem para se esquentar ou esfriar. Tinha os olhos cor de água, igual os dos grandes cachorros onceiros de um homem na Vereda do Liroliro. Diziam que ele não saía daquele lugar no pé-da-serra, porque lá tinha achado uma mina de ouro, não queria que ninguém tomasse. Daquelas brenhas sai é o gavião-pe-de-serra, que é o maior de todos, roxo-escuro, peito branco, muito grande, unhas grandes, se diz que é a águia; esse gaviãozão, ele roda por Gerais, por Baixio, mas mora mesmo é no pé-de-serra, em paredões de montanha: de lá vem voando, o corpo todo cheio de ar. E pois, aquele João Urugem, por um assombroso, conseguira ter informação da festa, e agora estava ali, na Samarra, se aposentando no matinho para lá dos currais. Mesmo assim, os cachorros estranhavam o indício dele, iam para lá, latir. João Urugem tinha ajuntado perto de si um monte de pedras, jogava nos cachorros quando precisava.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
Corpo de Baile, volume I
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.