quinta-feira, 14 de março de 2013

DE DIANTE PRA TRÁS



Daí, deu: bala beija-florou. Zuos ― ao que rachavam ombreiras das janelas, estraçalhavam, esfarelavam fasquia. Umas que caíam quase como colhidas, no assoalho do chão ― tinham dansado de ricochete ― e ficavam para lá, amolgadas, feito pedaço de cano, ou aveladas de maduras. Essas podiam se esfriar, de vagarinho. Perdiam sem valia aquele feio calor, que podia ter sido a vida de uma pessoa. O José Gervásio e o Araruta recuaram para o meio da sala, me recomendaram me acautelasse. Mas eu permaneci. Disse que não, não, não. Minhas duas mãos tinham tomado um tremer, que não era de medo fatal. Minhas pernas não tremiam. Mas os dedos se estremecitavam esfiapado, sacudindo, curvos, que eu tocasse sanfona. Aí, gritei: ― “Estrumes!” Deram fuzilada. Fogo fechado, as cargas de pólvora e o despejar e assoviar ― como o vento ronda, no final das águas... Mesmo assim eu queria e visava, dali não saí, do vão aberto, não dando de meu poder. Desfechei bem. Por mim, meu desprezo, como essas assoviantes deles varejavam... Eu não estava caçando a morte ― o senhor bem me entenda. Eu queria era a coragem maior. Macho com meu fuzil reiuno, dei salvas. Tive fechado o corpo? Quero que não; não pergunto. Não morri e matei. E vi. Sem perigo de minha pessoa.

Aí, quando foi, momental, peguei susto: lá em baixo, muito estava demudando. Só se fez que, inesperadamente, parte do povo do Hermógenes, que tantos eram ― a rascorja! ― tinham alcançado de rodear por trás da minha gente, na ponta da rua, tomando retaguarda. Iam vencer, fosse possível? Temi por todos. Ah, não, que não regiam. D’ind’hoje, o amigo meu João Vaqueiro eu estou vendo: mais homem, mais moreno, arrenegando de todos os macacos, nem suor ele não desperdiçava... o que ele vestiu, vestiu, couro é... e vai embora, dando muito as costas... lá adiante, acometendo, contra outros outros... Morreu, que mataram. Em obra de umas cem braças.

Ah, não! Os nossos agüentavam o relance, arre disparando, a mastro de balas; foi um fogo...

E eu, hesitado nos meus pés, refiz fé: teve o instante, eu sabia meu dever de fazer. Descer para lá, me ajuntar com os meus, para ajudar? Não podia, não devia de; daí, conheci. Ali, um homem, um chefe, carecia de ficar ― naquele meu lugar, no sobrado. Mas, resoluto, mandei ao Araruta e ao José Gervásio, que fossem, mas fossem! Eles mesmos queriam ir. Eles desceram a escada. Estado daquele fogo era um pipoco mal-acreditado. Tudo não sendo guerra? ― entendi. Um panelão na trempe, o que se cozinhava... Sobrestive. Surgindo o fim, eu restava desandado ao para trás, sozinho só, com os dois. O menino Guirigó ― uma mão apertando as costas da outra, seguidos esses estremecimentos, repuxava a cara, mas com os beiços abertos em dor, tudo uma careta. Ele era um menino. E o cego Borromeu fechava os olhos.

Tive pena. Não ouvi nada; eu disse: ― Vocês têm paciência , meus filhos. O mundo é meu, mas é demorado...” A arte que prometi: que, mais baque, mais retumbo, a gente ganhava! Antes bati uma palmada firme, no liso da minha coronha. A vitória! Ah ― a vitória ― eu no meio dela, que com os ventos arrastado...

E não era? Durou dali a meia-hora, nem bem, e vislumbrei outro alvoroço, mas da ponta da outra banda, e festivo para mim, me dando milagre. ―  Eh, do ar! Eh, dunga! Ao que era que tal  era que: repentemente, o pessoal meu do Cererê-Velho, sequazes de João Goanhá suprachegavam também, enfrentando os hermógenes pelas costas ― davam a toda retaguarda! De alegre ser, destampei tiro sobre tiro. A guerra, agora, tinha ficado enorme.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.