quarta-feira, 6 de março de 2013

MACHADO



Certo, o mal, o grotesco, o vil teriam sido obra do Diabo, em configuração que desfigura o plano original. Mas no pólo negativo não estaria a verdade do mundo? O outro lado, o bem e a harmonia, não seriam senão fantasias inspiradas pela astúcia da maldade humana? Por outra maneira: o mal é o sal da terra e só por via dele, reinterpretado de sua sombra ilusória, o homem se realiza. Na obra comum, tecida de fios divinos e de fios diabólicos, ultrapassando a dissensão maniqueísta, tudo aporta no demoníaco. Deus autoriza o trabalho do Diabo, mas, embora a vênia, ele atua por si próprio, senhor do mundo. Culmina o Tinhoso na criação de sua igreja e do seu sermão, acordes últimos da despedida da divindade e da providência da terra. O Diabo (a maiúscula é do autor) teve a idéia de fundar sua igreja. “Não se apavorem as almas católicas” ─ dirá em outro lugar. Já Santo Agostinho dizia que “a igreja do Diabo imita a igreja de Deus” (P. R., O Sermão do Diabo). Agora, ao contrário do sentimento expresso em Adão e Eva e no Gênese de Marcolini, Satanás não impetra licença do Senhor: ele desafia e se limita a comunicar sua idéia ao Padre Eterno. Satanás, como Mefistófeles, é o espírito que nega, que tudo nega. “O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há um só de negar tudo” (H. S. D., A Igreja do Diabo). O modo de negar leva o diabo a retornar ao demoníaco, com a exaltação dos pecados que ajudam ao fomento da vontade schopenhauriana, em favor de Humanitas. Com uma tonalidade diversa, harmônica com a retificação ascendente da velha natureza inconsciente: o que ajuda a vida, no seu elã universal, se aproxima do espírito do mundo, cujo consórcio de metafísica e ética tempera o pessimismo original. Os pecados são necessários a Humanitas, e, uma vez necessários, são fonte de bem-aventurança e não de dor. O dedo de Pangloss está de novo aqui, sempre com seriedade maior. Se os pecados capitais são o instrumento da realização da vida, eles levam às delícias da terra, à glória e à pompa. O Diabo nega os preceitos divinos, para afirmar o mundo e o alento que vibra no homem. É o Diabo a serviço do Demônio, do pandemonismo. “Clamava ele que as virtudes deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e as legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada:”Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu...”... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Lúculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do senhor, expressão metafísica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas, virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento... Nada mais curioso, por exemplo,  do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem, o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora ele não exigia que todos fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada” (H. S. D., A Igreja do Diabo).


Raymundo Faoro
Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro.
3ª edição. 1988.