Certo, o mal, o grotesco, o vil teriam sido obra do
Diabo, em configuração que desfigura o plano original. Mas no pólo negativo não
estaria a verdade do mundo? O outro lado, o bem e a harmonia, não seriam senão
fantasias inspiradas pela astúcia da maldade humana? Por outra maneira: o mal é
o sal da terra e só por via dele, reinterpretado de sua sombra ilusória, o
homem se realiza. Na obra comum, tecida de fios divinos e de fios diabólicos,
ultrapassando a dissensão maniqueísta, tudo aporta no demoníaco. Deus autoriza
o trabalho do Diabo, mas, embora a vênia, ele atua por si próprio, senhor do
mundo. Culmina o Tinhoso na criação de sua igreja e do seu sermão, acordes
últimos da despedida da divindade e da providência da terra. O Diabo (a
maiúscula é do autor) teve a idéia de fundar sua igreja. “Não se apavorem as
almas católicas” ─ dirá em outro lugar. Já Santo Agostinho dizia que “a igreja
do Diabo imita a igreja de Deus” (P. R., O
Sermão do Diabo). Agora, ao contrário do sentimento expresso em Adão e Eva e no Gênese de Marcolini,
Satanás não impetra licença do Senhor: ele desafia e se limita a comunicar sua
idéia ao Padre Eterno. Satanás, como Mefistófeles, é o espírito que nega, que
tudo nega. “O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja
uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem
Lutero. Há muitos modos de afirmar; há um só de negar tudo” (H. S. D., A Igreja do Diabo). O modo de negar leva
o diabo a retornar ao demoníaco, com a exaltação dos pecados que ajudam ao
fomento da vontade schopenhauriana, em favor de Humanitas. Com uma tonalidade
diversa, harmônica com a retificação ascendente da velha natureza inconsciente:
o que ajuda a vida, no seu elã universal, se aproxima do espírito do mundo,
cujo consórcio de metafísica e ética tempera o pessimismo original. Os pecados
são necessários a Humanitas, e, uma vez necessários, são fonte de
bem-aventurança e não de dor. O dedo de Pangloss está de novo aqui, sempre com
seriedade maior. Se os pecados capitais são o instrumento da realização da
vida, eles levam às delícias da terra, à glória e à pompa. O Diabo nega os
preceitos divinos, para afirmar o mundo e o alento que vibra no homem. É o
Diabo a serviço do Demônio, do pandemonismo. “Clamava ele que as virtudes
deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e as legítimas.
A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza,
que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe
era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência
de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada:”Musa, canta a cólera
de Aquiles, filho de Peleu...”... O mesmo disse da gula, que produziu as
melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas
de Lúculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas,
ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só
mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor
sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus
bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha
do senhor, expressão metafísica, pela vinha do Diabo, locução direta e
verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais cepas do
mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de
prosperidades infinitas, virtude preciosa, que chegava a suprir todas as
outras, e ao próprio talento... Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude.
Chamava-lhe o braço esquerdo do homem, o braço direito era a força; e concluía:
muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora ele não exigia que todos fossem
canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada” (H.
S. D., A Igreja do Diabo).
Raymundo Faoro
Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro.
3ª edição. 1988.