domingo, 31 de março de 2013
OS NOVOS INCONFIDENTES
APOSENTADORIA
(cont.)
Sebastião
Luciano de Rezende
Sebastião
Nunes da Cunha
Sebastião
Pereira da Silva
Sebastião
Pereira Mendonça
Secundo
Avelino Peito
Sérgio
Carrera de Albuquerque Melo
Sérgio
Maurício Corrêa do Lago
Severino
Ramos Pereira
Severino
Rodrigues Sobrinho
Severo
Carelli Vieira
Sidney
Tavares Loherty
Sílvio
de Lemos Picanço
Sílvio
Dorça
Sílvio
Leopoldo de Macambira Braga
Sílvio
Menicucci
Sílvio
Pélico Porto
Sinval
Coube Bogado
Sócrates
Vieira
Solânio
Barbosa
Stefano
Sikorski
Suedenberg
Leme da Veiga
Sylvio
Carvalho de Vasconcelos
Sylvio
de Lemos Picanço
Tabajara
Borges Pinheiro
Taciano
Gomes de Mello
Tácito
da Silveira Caldas
Talcício
José Soares
Tandick
Rezende de Morais
Tarcísio
Ferreira
Tarso
da Silveira Pessoa
Tasso
Maurício de Carvalho
Terezinha
Gisela Chaise
Thelmo
Índio do Brasil Novais
Theodósio
Benedito Porcidônio
Tito
Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque
Togo
Póvoa de Barros
Uaracy
Frade Palmeira
Valdeglace
Soares Monteiro
Valdevino
de Oliveira
Valduíno
da Rosa Alves
Vanderlei
Magalhães de Freitas
Vanor
Marçal
Veríssimo
Pereira de Souza
Vicente
Alberto Carício
Victor
de Britto Velho
Victor
dos Santos
Victor
Leopoldino
Victor
Rodrigues da Costa
Vinícius
de Morais
Virgílio
Cardoso da Silva
Virgílio
de Oliveira
Vítor
Miniero
Vítor
Nunes Leal
Fonte:
Câmara
dos Deputados
OS INCONFIDENTES
Carta
do S. M. (Aux.) Joaquim Pedro da Câmara ao Visconde de Barbacena; São João del
Rei, 7-06-1789. (Traslado).
Ilustríssimo
e Excelentíssimo Senhor ― Em cumprimento do que Vossa Excelência é servido
mandar-me em ofício de trinta de maio passado, ponho na presença de Vossa
Excelência a carta de minha prima Dona Joana de Meneses e Valadares, de que na
mesma se faz menção, inclusa nesta, de que é portador o Furriel José de Deus.
Deus guarde a Vossa Excelência. São João del Rei, sete de junho de mil e
setecentos e oitenta e nove ― Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Visconde de
Barbacena, Governador e Capitão General desta Capitania ― Joaquim Pedro da Câmara, Sargento-Mor de Auxiliares. ― E não se
continha mais na dita carta, que sem coisa que dúvida faça, aqui bem e
fielmente trasladei da própria que fica em poder do Desembargador Pedro José
Araújo de Saldanha, Juiz desta Devassa, à qual me reporto; e com o mesmo
Ministro esta conferi com o original; nesta Vila Rica, aos quinze dias do mês
de junho de 1789; e eu, o Bacharel José Caetano César Manitti, Escrivão nomeado
que o escrevi, conferi e assinei.
Saldanha ― José Caetano
César Manitti
sábado, 30 de março de 2013
EMANUEL E FEDERICO
Mesmo
tinha viajado de vir ali, estúrdio, um homem-bicho, para vislumbrar a festa! O
João Urugem, que nunca ninguém enxergava no normal, que não morava em vereda,
nem no baixio, nem em chapada, mas vevia solitário, no pé-da-serra. Desde não
se sabia mais, desde moço, quando o acusaram de um furto, que depois se veio a
expor que ele não executara ― tinha ido viver sozinho no pé-de-serra, onde faz
casa nas grotas e as corujas escolhem sombra, onde há monte de mato, essas
pedras com limo muito molhado, fontes, minadouros de água que sobe da terra aos
borbos, jorra tesa, com força, o inteiro ano. João Urugem, que morava numa
choupana em árvores e moitas, que os degraus de sete lajedos ― cada laje mais
larga e chata ― separavam da beira da lagoa, onde o jacaré-de-cabeça-azulada
põe o focinho fora d’água, quando o sol sai tarde, e espirra mau-agouro e olha
mau-olhado. João Urugem fedia a mijo de cavalo. Viera de lá, por conta da festa
da capela ― isto se entendia. Ele não sabia mais falar corretamente com os
outros, parece que chorava pensando que estava se rindo. Pegara por lá essa
doença de malcheirar, quem sabe também o que ele não comia? Já não devia de se
lembrar mais da culpa do furto, se esquecera. Olhado do jacaré. Quem se
aproximava para ver o toco da língua dele jacaré, ele devorava a memória da
cabeça da pessoa. João Urugem sentava no chão, punha as palmas da mão abertas
encostadas em terra, que nem para se esquentar ou esfriar. Tinha os olhos cor
de água, igual os dos grandes cachorros onceiros de um homem na Vereda do
Liroliro. Diziam que ele não saía daquele lugar no pé-da-serra, porque lá tinha
achado uma mina de ouro, não queria que ninguém tomasse. Daquelas brenhas sai é
o gavião-pe-de-serra, que é o maior de todos, roxo-escuro, peito branco, muito
grande, unhas grandes, se diz que é a águia; esse gaviãozão, ele roda por
Gerais, por Baixio, mas mora mesmo é no pé-de-serra, em paredões de montanha:
de lá vem voando, o corpo todo cheio de ar. E pois, aquele João Urugem, por um
assombroso, conseguira ter informação da festa, e agora estava ali, na Samarra,
se aposentando no matinho para lá dos currais. Mesmo assim, os cachorros
estranhavam o indício dele, iam para lá, latir. João Urugem tinha ajuntado
perto de si um monte de pedras, jogava nos cachorros quando precisava.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
Corpo
de Baile, volume I
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.
O QUE JESUS ENSINOU E OS CRISTÃOS REPUDIAM
“Que vos parece? Um homem tinha dois filhos.
Dirigindo-se ao primeiro, disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha’. Ele
respondeu: ‘Não quero’; mas depois, pego pelo remorso, foi. Dirigindo-se ao
segundo, disse a mesma coisa. Este respondeu: ‘Eu irei, senhor’; mas não foi.
Qual dos dois realizou a vontade do pai?” Responderam-lhe: “O primeiro.” Então
Jesus lhes disse: “Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos
precederão no Reino de Deus. Pois João veio a vós num caminho de justiça, e não
crestes nele. Os publicanos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, vendo
isso nem sequer tivestes remorso para crer nele.”
Mt 21, 28-32
quinta-feira, 28 de março de 2013
A BÍBLIA SAGRADA
Depois José disse a seu intendente: “Enche de
mantimento as sacas desses homens, quanto puderem levar, e põe o dinheiro de
cada um na boca de sua saca. Minha taça, a de prata, tu a porás na boca da saca
do mais novo, junto com o dinheiro de seu mantimento.” E assim ele fez.
Quando amanheceu, foram despedidos os homens com seus
jumentos. Eles tinham apenas saído da cidade e não iam longe, quando José disse
a seu intendente: “Levanta! Corre atrás desses homens, alcança-os e dize-lhes:
‘Por que pagastes o bem com o mal? Não é o que serve a meu senhor para beber e
também para ler os presságios? Procedestes mal no que fizestes!’”
Ele os alcançou, pois, e lhes disse essas palavras.
Mas eles responderam: “Por que, meu senhor, falas assim? Longe de teus servos
fazerem semelhante coisa! Vê: o dinheiro que tínhamos encontrado na boca de
nossas sacas de trigo, tornamos a trazê-lo da terra de Canaã. Como teríamos nós
roubado, da casa de teu senhor, prata ou ouro? Aquele de teus servos com quem
se encontrar o objeto será morto e nós mesmos nos tornaremos escravos de teu
senhor.” Ele retomou: “Que seja como dissestes: aquele com quem se encontrar o
objeto será meu escravo, e os demais estareis livres.” Depressa, cada qual pôs
no chão sua saca de trigo e a abriu. Ele os examinou, começando pelo mais velho
e terminando pelo mais novo, e a taça foi encontrada na saca de Benjamim! Então
eles rasgaram suas roupas, carregou cada qual o seu jumento e voltaram à
cidade.
Quando Judá e seus irmãos entraram na casa de José,
este ainda estava ali, e eles prostraram-se por terra diante dele. José lhes
perguntou: “Que é isso que fizestes? Não sabíeis que um homem como eu sabe
adivinhar?” E Judá respondeu: “Que diremos a meu senhor, como falar e como
justificar-nos? Foi Deus quem mostrou a falta de teus servos. Eis-nos, pois,
escravos de meu senhor, tanto nós quanto aquele nas mãos de quem se encontrou a
taça.” Mas ele retrucou: “Longe de mim agir assim! O homem nas mãos de quem se
encontrou a taça será meu escravo; mas vós, retornai em paz à casa de vosso
pai.”
Gn 44, 1-17
quarta-feira, 27 de março de 2013
ONDE CANTA O SABIÁ
O
INVENTÁRIO
Peço
a um amigo que me ajude neste transe melancólico; aluguei uma casa mobiliada, e
o velho casal de proprietários fez uma lista de seus trecos para eu conferir. A
lista é minuciosa e, por isso, imensa; são mil grandes e pequenas coisas, duas
marquesas, um quadro a carvão representando São Francisco de Assis (mas o
desenho é ruim e o santo está gordo), uma horrível, incomodíssima cômoda de
metal, dois “choapinos”, um espelho quadrado que agora será visitado pela minha
cara e talvez por hábito me faça meio parecido com esse velho chileno que sofre
do coração.
Ah,
sim, o piano. O vellho quer levar o antigo piano alemão; resisto; quero o
piano, não sei tocar, mas me agrada ter em casa um piano; não seria possível
deixar o piano? Os velhos se consultam; sim, ficará o piano. Em compensação há
essa absurda mesa de pôquer que eles insistem em deixar, enorme, horrível,
esses quadros a óleo detestáveis que eles elogiam tanto e que eu meterei todos
dentro de um armário, um tinteiro de cobre, uma estatueta japonesa, coisas antigas
como um violetero onde jamais
colocarei violetas, um licoreiro que nunca verá licor, um paragüero que sonha com os guarda-chuvas dantanho, e essa feia mesita ratona, e essas coisas inúteis de
metal e cristal, o relógio de cuco com o passarinho sempre cantando errado,
pobre passarinho extraviado no tempo...
A
lista é terrivelmente minuciosa; eu terei de apresentar, ao sair desta casa,
tantos ganchos de pendurar roupa e tantos cinzeirinhos de cobre; e já que
insisti pelo piano, tenho de me conformar com a presença de um enorme e
sinistro mueble musiquero, onde se
guardam velhos tangos e valsas.
Meu
amigo confere cas coisas, de lista na mão, e a velha vai repetindo os nomes e
apontando os objetos, numa ladainha interminável; bocejo no meio de meu reino
desordenado e precário; uma a uma terei de entregar um diaa todas essas coisas
de volta a esses velhos; e para eles são coisas de certo modo sagradas, com o
longo contato de seus olhos e de suas mãos, coisas de suas vidas que
incorporaram minutos e anos, lembranças, palavras, emoções. Bocejo, depois
fumo; nego-me a examinar, como eles gostariam , o detalhe de cada coisa, e
minha indiferença parece que vagamente os ofende. Creio que sentem no fundo da
alma um ódio deste estranho que vai morar em sua casa, com suas coisas; sou um
intruso, o mais antipático dos intrusos, o intruso que paga o direito de ser
intruso. E então eles ficam mais minuciosos, gastam meia hora para acrescentar
na lista algumas coisinhas sem importância que tinham omitido, são avaros do
que me alugam...
Partem.
Chego à janela, vejo-os que fecham com
todo o cuidado o portão. E sorrio. Esses velhos são uns insensatos. Arrolaram
centenas de cacarecos inúteis e se esqueceram do mais importante, do que me
atraiu a esta casa, dos bens sem preço que um vândalo poderia destruir e,
entretanto, não estão no inventário; daqueles bens que, se sumissem, fariam
esses dois velhos desfalecer de espanto e dor; o que eles não compraram com
dinheiro, mas com o longo amor, o longo, cotidiano carinho: as árvores altas,
belas, ainda úmidas da chuva da noite, brilhando, muito verdes, ao sol.
Santiago,
abril, 1955.
Rubem
Braga
Ai
de Ti, Copacabana
Sabiá,
Rio de Janeiro, 5ª edição, 1969.
terça-feira, 26 de março de 2013
IMPERADOR DA LÍNGUA PORTUGUESA
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior.
A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho.
Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem
advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido, e trigo
pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia
non habebat humorem; trigo afogado: Exortae
spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcatum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da
missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados,
porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários
comidos, porque a outros comeram os bárbaros da ilha dos Aroans; houve
missionários mirrado, porque tais tornaram os da jornada dos Tocantins, mirrados
da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas
brenhas, matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe
quadra bem o Natum aruit, quia non
habebat humorem? E que sobre
mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos
dos homens: Conculcatum est? Não me
queixo, nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela
seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor
de Vós mirrados; afogados sim, mas por amor de Vós afogados; comidos sim, mas
por amor de Vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de Vós
perseguidos e pisados.
Padre Antônio Vieira
Sermão da Sexagésima
segunda-feira, 25 de março de 2013
NÃO É MOTOR DE TUDO E NOSSA ÚNICA / FONTE DE LUZ, NA LUZ DE SUA TÚNICA?
CÓDIGO
MORSE
Se
indagas como, assim,
sei
que, no fundo, atrai-te,
mais
que o de Shere Hite,
o
Relatório Kinsey
e,
quanto ao nosso encaixe
futuro,
não me dói de-
clarar
que, a Sigmund Freud,
prefiro
Wilhelm Reich ―
só
para que me entendas
melhor,
deixa-me, dentro
das
regiões pudendas,
expor
meu argumento
―
com dedos ― à mucosa
do
teu botão de rosa.
Nélson
Ascher
domingo, 24 de março de 2013
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
Nem convém esquecer que os franceses desde 1715
estabelecidos nas ilhas Reunião e Maurício, mostram-se hoje inferiores em
energia e eficiência aos das primeiras gerações.
Não três nem quatro, mas duas gerações apenas bastaram
para enlanguescer os anglo-americanos que foram estabelecer-se no Havaí. E
Semple recorda que a pesquisa realizada em 1900 pela International Harvester
Company of America revela o enlanguescimento da energia alemã no Sul do Brasil,
região, aliás, subtropical.
O português não: por todas aquelas felizes
predisposições de raça, de mesologia e de cultura a que nos referimos, não só
conseguiu vencer as condições de clima e de solo desfavoráveis ao
estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de
gente branca para tarefa colonizadora
unindo-se com mulher de cor. Pelo intercurso com mulher índia ou negra
multiplicou-se o colonizador em vigorosa e dúctil população mestiça, ainda mais
adaptável do que ele puro ao clima tropical. A falta de gente, que o afligia,
mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação ― contra o que não o
indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos ― foi
para o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos.
Vantagem para a sua melhor adaptação, senão biológica, social.
Sempre nega aos movimentos de população européia nas
regiões tropicais da Ásia, Austrália, África e América, e de americana nas
Filipinas, o caráter de genuína expansão étnica: parece-lhe que até hoje a
colonização européia e anglo-americana dos trópicos tem sido antes exploração
econômica ou domínio político: a colonização do tipo que representam os setenta
e seis mil ingleses que dirigem por assim dizer de luvas e preservados de mais
íntimo contato com os nativos por profiláticos de borracha os negócios comerciais
e políticos da Índia. Abre Semple exceção para os portugueses que pela
hibridização realizariam no Brasil obra verdadeira de colonização, vencendo a
adversidade do clima.
Embora o clima já ninguém o considere o
senhor-deus-todo-poderoso de antigamente, é impossível negar-se a influência
que exerce na formação e no desenvolvimento das sociedades, senão direta, pelos
efeitos imediatos sobre o homem, indireta pela sua relação com a produtividade
da terra, com as fontes da nutrição, e com os recursos de exploração econômica
acessíveis ao povoador.
Estão meio desacreditadas as doenças tropicais. Não se
nega, porém, que o clima, per se ou
através de fatos sociais ou econômicos por ele condicionados, predisponha os
habitantes dos países quentes a doenças raras ou desconhecidas nos países de
clima frio. Que diminua-lhes a capacidade de trabalho. Que os excite aos crimes
contra a pessoa. Do mesmo modo que parece demonstrado resistirem umas raças
melhor do que outras a certas influências patogênicas peculiares, no caráter ou
intensidade, ao clima tropical.
Gilberto Freyre
Casa-Grande & Senzala
sábado, 23 de março de 2013
DE DIANTE PRA TRÁS
Saiba o senhor: eu estava ali, assim em padastro de
todos, de do ar, de rechego, feito que em jirau-de-espera, para castigar onça
assassinã. Vi ou não vi? Só espreitei. Dono do que lucrei, de espreitar. Uns
deles, num terreiro acolá, manobravam a gosto, nas más armas. Assestei. Um era
um sujeitão, muito baiano nos trajes. Do gatilho do rifle, no triz, me mandei
nele. Aquele caiu torto; o outro completou. Assim eram três: o derradeiro
percebeu que tinha céu, dando gambetas. Zumba! levou não sei quantas
esburacadoras, na tampa de suas costas... Ah, ali valia; donde que eu estava.
Ao mesmo quando revingaram, com umas descargas, despejadas. Dei atrás, mas
sobranceei, de talaia. Fazia bem duas horas que aquela batalha tinha
principiado. Se estava no poder do meio-dia.
De graça berra é o boi, tirante a vaca. Dessa daquela
vez, tudo não acabava sem um fim ― ferrado que o Hermógenes não era cão de
desmorder os dentes; e levinha cinqüenta léguas! Toada tinha de ter um prazo. E
há um vero jeito de tudo se contar ― uma vivença dessas? Os tiros, gritos,eco,
baque boléu, urros nos tiros e coisas rebentáveis. Dava até silêncio. Pois
porque variava, naquele compasso: que bater, papocar, lascar, estralar e
trovejar ― truxe― cerrando fogo; e daí marasmar, o calado de repente, ou vindo
aos tantos se esmorecendo, de devagar. Tempo que me mediu. Tempo? Se as pessoas
esbarrassem, para pensar ― tem uma coisa! ―: eu vejo é o puro tempo vindo de
baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da morte:
imperfeição. Bobices minhas ― o senhor em mim não medite. Mas, sobre uns
assuntos assim, reponho, era que eu almejava ter perguntado a Diadorim, na
véspera, de noite, conforme quando com ele passeei. Naquela hora, eu cismasse
de perguntar a Diadorim:
― “Tu não acha que todo o mundo é doido? Que um só
deixa de doido ser é em horas de sentir a completa coragem ou o amor? Ou em
horas em que consegue rezar?”
Não indaguei. Mas eu sabia que Diadorim havia de me
dar resposta:
― “Joca Ramiro não era doido nenhum, Riobaldo; e, ele,
mataram..”
Então, eu podia, revia:
― “...Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di,
então, quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa
fazenda, em boa beira do Urucuia... O Urucuia, perto da barra, também tem belas
croas de areia, e ilhas que forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão
os pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da
saudade ― jaburu e galinhol e garça-branca, a garça-rosada que repassa em
extensos no ar, feito vestido de mulher... E o manuelzinho-da-croa, que pisa e
se desempenha tão catita ― o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo
de mais amor?...”
Podia ser? Impossivelmente.
Eu não tinha sido capaz de perguntar aqueles ensalmos
a Diadorim, de fato só em coisa à-toa se conversou, trivial a respeito de
munição e meus armamentos, e avio de guerra. Véspera. As horas é que formam o
longe. Mas, agora, ali, em ocasiões de morte, eu repisei; e, mesmo, amontado no
momento, que era que eu ia dizer a Diadorim, se perto de mim ele parasse? Hoje,
não sei. Não soubesse , naqueles adiantes. Ali, por onde eu estava, eu marcava
muito suave a mão da morte; feito um boiadeiro, que, em janela ou porta, ou
tábua de curral ou parede de casa, por todas as partes por onde anda, carimba
remarcada a amostra do ferro dele de seu gado, para se conhecer. Assim. Como
lembro, que eu tinha uma dor-de-cabeça; era uma dor-de-cabeça forte, fincada
num ai só, furante de verrumas. Agüentei. Devia de ser da sede.
João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.
sexta-feira, 22 de março de 2013
UM APRENDIZ DE FEITICEIRO
MARCINHA
Marcinha, doce de coco,
coisa mais linda que há,
te amo com aquele amor
que um professor pode dar:
todo feito de ternura,
entretecido no ar.
Amor de pai para filha,
mais que isto: o seu similar
não é na terra que o tenho,
mas só no céu posso achar.
Amor que, com alegria,
em você vai apostar
e dar-lhe o
mapa, o caminho
da flor, do azul e da paz.
1981
quinta-feira, 21 de março de 2013
OTELO & SANT'IAGO
Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
― Vocês estão jogando o siso?
Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao
pé da mulher. Soltamos as mãos depressa, e ficamos atrapalhados. Capitu foi ao
muro, e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes escritos.
― Capitu!
― Papai!
―Não me estragues o reboco do muro.
Capitu riscava sobre o riscado, para apagar bem o
escrito. Pádua saiu ao quintal, a ver o que era, mas a já a filha tinha
começado outra cousa, um perfil, que disse ser o retrato dele, e tanto podia
ser dele como da mãe; fê-lo rir, era o essencial. De resto, ele chegou sem
cólera, todo meigo, apesar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que nos
apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas abauladas,
donde lhe veio a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe pôs. Ninguém lhe
chamava assim lá em casa; era só o agregado.
― Vocês estavam jogando o siso?, perguntou.
Olhei para um pé de sabugueiro que ficava perto.
Capitu respondeu por ambos.
― Estávamos, sim, senhor; mas Bentinho ri logo, não
agüenta.
― Quando eu cheguei à porta, não ria.
―Já tinha rido das outras vezes, não pode. Papai quer
ver?
E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo.
O susto é naturalmente sério; eu estava ainda sob a ação do que trouxe a
entrada de Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para
legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de esperar, desviou o rosto,
dizendo que eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há
cousas que só se aprendem tarde, é mister nascer com elas para fazê-las cedo. E
melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitu, após duas voltas,
foi ter com a mãe, que continuava à porta da casa, deixando-nos a mim e ao pai
encantados dela; o pai, olhando para ela e para mim, dizia-me, cheio de
ternura:
― Quem dirá que esta pequena tem quatorze anos? Parece
dezessete. Mamãe está boa?, continuou voltando-se inteiramente para mim.
― Está.
― Há muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de
dar um capote ao doutor, mas não tenho podido, ando com trabalhos da
repartição, em casa; escrevo todas as noites que é um desespero; negócio de
relatório. Você já viu o meu gaturamo? Está ali no fundo. Ia agora mesmo buscar
a gaiola; ande ver.
Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem
ser preciso jurar pelo céu nem pela terra. Meu desejo era ir atrás de Capitu e
falar-lhe agora do mal que nos esperava, mas o pai era o pai, e demais amava
particularmente os passarinhos. Tinha-os de vária espécie, cor e tamanho. A
área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de canários, que faziam
cantando um barulho de todos os diabos. Trocava pássaros com outros amadores,
comprava-os, apanhava alguns, no próprio quintal, armando alçapões. Também, se
adoeciam, tratava deles como se fossem gente.
Machado de Assis
Dom Casmurro
quarta-feira, 20 de março de 2013
HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA
O regime instituído pela Constituição de 1934 foi
desde logo encarado como simples interregno entre a Revolução de 1930 e as
estruturas políticas que ela devia
estabelecer — e que, no caso, foram as de 1937. A legislação
trabalhista, inclusive a idéia de uma justiça específica, começa, como se sabe,
desde a criação do Ministério do Trabalho; e a outra constante do regime de 1937, a forte unidade
nacional contra os excessos do federalismo republicano, era uma aspiração expressa
de 1930, como se lê no artigo de Américo Palha, “De pé pelo Brasil”:
A Revolução
desfraldou, no seu advento, a bandeira da unidade nacional (...). A Revolução
até agora não conseguiu realizar o postulado da unidade —regionalismo.
Dir-se-ia, pois, à primeira vista, que um regime
político de Direita era o resultado, não só inevitável, mas normal, da
revolução esquerdista de 1930, mas a
verdade é que, para além das fáceis polarizações polêmicas e jornalísticas,
Direita e Esquerda sempre intercambiaram os respectivos princípios e
conseqüências, a tal ponto que é pura convenção designarmos os regimes
políticos autoritários por uma ou outra dessas etiquetas. São “de Direita”,
para os esquerdistas, todos os governos dominados por seus adversários — e vice-versa. A prova está em que, no caso
brasileiro, o regime de 1937 foi visto como “fascista” e, a esse título,
direitista, pelos contemporâneos e, nomeadamente, pelos esquerdistas — o que
nos preparava mal para aceitar e compreender o processo de esquerdização
historiográfica de que foram objeto, já em nossos dias, Getúlio Vargas e o
Estado Novo, para nada dizer de Artur Bernardes e seu nacionalismo econômico.
É certo que, em 1933, a Esquerda se havia
notavelmente “direitizado”, na mesma medida em que a Direita revelava
inquietantes tendências esquerdistas; tratando do problema na terceira edição,
então publicada, do seu livro O Socialismo no Brasil, Antônio
Piccarolo referia-se ao programa do
Centro Socialista Paulistano, que dizia “apoiar todas as iniciativas que tendem
a aumentar a liberdade e a independência dos colonos”, favorecendo a pequena
propriedade, o patronato de assistência, os escritórios de colocação, o
patrocínio jurídico gratuito, as cooperativas de consumo, as escolas primárias
e agrícolas, etc., etc.; “tudo isso não é rigorosamente socialismo”, concluía o
desalentado Piccarolo, “mas é tudo o que de bom e prático podem fazer aqui os
socialistas”.
Wilson Martins
História da Inteligência Brasileira
vol. VII (1933-1960)
Cultrix. Editora da Universidade de São Paulo.
São Paulo, SP. 1979.
terça-feira, 19 de março de 2013
PANEM NOSTRUM
CARNAL E MÍSTICO
Pelas regiões tenuíssimas da bruma
Vagam as Virgens e as Estrelas raras...
Como que o leve aroma das searas
Todo o horizonte em derredor perfuma.
Numa evaporação de branca espuma
Vão diluindo as perspectivas claras...
Com brilhos crus e fúlgidos de tiaras
As Estrelas apagam-se uma a uma.
E então, na treva, em místicas dormências,
Desfila, com sidéreas lactescências,
Das Virgens o sonâmbulo cortejo...
Ó Formas vagas, nebulosidades!
Essência das eternas virgindades!
Ó intensas quimeras do Desejo...
Cruz e Sousa
Broquéis
segunda-feira, 18 de março de 2013
ONDE CANTA O SABIÁ
A
CORRETORA DE MAR
A
mulher entrou no meu escritório com um sorriso muito amável e os olhos muito
azuis. Desenrolou um mapa e começou a falar com uma certa velocidade, como é
uso dos chilenos. Gosto de ver mapas, e me ergui para olhar aquele.
Quando
percebi que se tratava de um loteamento, e a mulher queria me vender uma parcela, me coloquei na defensiva; disse
que no momento suspendi meus negócios
imobiliários, e até estava pensando em vender meus imensos territórios no
Brasil; que além disso o Chile é um país muito estreito e sua terra deveria ser
dividida entre seu povo; até ficaria mal a um estrangeiro querer especular com
um trecho da faja angosta, que é como
os chilenos chamam sua tira estreita de terra, que por sinal costumam dizer que
é “larguíssima” para assombro do brasileiro recém-chegado, que não sabe que
isso em castelhano quer dizer “compridíssima”.
Os
olhos azuis fixaram-se nos meus, a mão extraiu de uma pasta a fotografia de um
terreno plantado de pinheirinhos de dois ou três anos: não se tratava de
especulação imobiliária; dentro de poucos anos eu seria um madeireiro, poderia
cortar meus pinheiros... Ponderei que tenho uma pena imensa de cortar árvores.
―
A senhora não tem?
Também
tinha. E então baixou a voz, sombreou os olhos de poesia, e me disse que ela
mesma, corretora, também comprara duas parcelas naquele terreno. E tinha
certeza ― confessava ― que também não teria coragem de mandar cortar meus pinheiros;
também adorava árvores e passarinhos, cortaria apenas os pinheiros necessários
para fazer uma casinha de madeira: o lugar é lindo, em um pequeno planalto, dá
para uns penedos junto ao mar; as árvores choram, e cantam com as ondas quando
sopra o vento do oceano...
Confesso
que paguei a primeira prestação: ela passou o recibo, sorriu, me disse “muchas
gracias” e “hasta lueguito” e partiu com seus olhos azuis, me deixando meio
tonto, com a vaga impressão de ter comprado um pedaço do Oceano Pacífico.
Santiago
do Chile, abril, 1955
Rubem
Braga
Ai
de Ti, Copacabana
Sabiá.
Rio de Janeiro. 1960.
domingo, 17 de março de 2013
IMPERADOR DA LÍNGUA PORTUGUESA
Todos estes contrários que digo, e todas estas
contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear
(diz Cristo), mas com pouca ventura. Uma parte do trigo caiu entre os espinhos,
e afogaram-no os espinhos. Aliud cecidit inter
spinos, et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras
por falta de umidade: Aliud cecidit super
petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. Outra parte caiu no
caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves: Aliud cecidit secus via, et conculcatum est, et volucres caeli
comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do mundo se armaram
contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no mundo se reduzem a
quatro gêneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como
os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como
as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas, que se não armasse contra o
semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa
nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça
do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras
secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no, e os homens?
Pisaram-no: Conculcatum est. Ah hominibus
(diz a Glossa). Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo mundo,
disse-lhes desta maneira: Euntes in
mundum universum, predicate omni creaturae: Ide, e pregai a toda a
criatura. Como assim, Senhor? Os animais não são criaturas? As árvores não são
criaturas? As pedras não são criaturas? Pois hão os Apóstolos de pregar às
pedras? Hão-de pregar aos troncos? Hão-de pregar aos
animais? Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os
Apóstolos iam pregar a todas as nações do mundo, muitas delas bárbaras e
incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de
criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam
de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores
evangélicos vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as
criaturas? Grande desgraça!
Padre Antônio Vieira
Sermão da Sexagésima
sábado, 16 de março de 2013
NÃO É MOTOR DE TUDO E NOSSA ÚNICA FONTE DE LUZ NA LUZ DE SUA TÚNICA?
Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu descendo do burrico,
Foste colher sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampamos, inda o Sol se via,
E houve talhadas de melão, damascos,
e pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.
Cesário Verde
MINHA TERRA TEM PALMEIRAS
Ao contrário da aparente incapacidade dos nórdicos, é
que os portugueses têm revelado tão notável aptidão para se aclimatarem em
regiões tropicais. É certo que através de muito maior miscibilidade que os
outros europeus: as sociedades coloniais de formação religiosa têm sido todas
híbridas, umas mais outras menos. No Brasil, tanto em São Paulo como em
Pernambuco ― os dois grandes focos de energia criadora nos primeiros séculos da
colonização, os paulistas no sentido horizontal, os pernambucanos no vertical ―
a sociedade capaz de tão notáveis iniciativas como as bandeiras, a catequese, a
fundação e colonização da agricultura tropical, as guerras contra os franceses
no Maranhão e contra os holandeses em Pernambuco, foi uma sociedade constituída com pequeno número de mulheres brancas e larga e
profundamente mesclada de sangue indígena. Diante do que torna-se difícil, no
caso do português, distinguir o que seria aclimatabilidade de colonizador
branco ― já de si duvidoso na sua pureza étnica e na sua qualidade, antes
convencional que genuína do europeu ― da capacidade de mestiço, formado desde o primeiro momento pela união do
adventício sem escrúpulos nem consciência de raça com mulheres da vigorosa
gente da terra.
De qualquer modo, o certo é que os portugueses
triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira
sociedade moderna constituída nos trópicos com característicos nacionais e
qualidades de permanência. Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez de se
retardarem como nas possessões tropicais de ingleses, franceses e holandeses.
Outros europeus, estes brancos, puros, dólico-louros
habitantes de clima frio, ao primeiro contato com a América equatorial
sucumbiriam ou perderiam a energia colonizadora, a tensão moral, a própria
saúde física, mesmo a mais rija, como os Puritanos colonizadores de Old
Providence; os quais, da mesma fibra que os pioneiros da Nova Inglaterra, na
ilha tropical se deixaram espapaçar nuns dissolutos e moleirões.
Não foi outro o resultado da emigração de loyalists ingleses da Geórgia e de
outros dos novos Estados da União Americana para as ilhas Bahamas ― duros
ingleses que o meio tropical em menos de cem anos amolengou em “poor white trash”; o mesmo teria
provavelmente sucedido aos calvinistas franceses que no século XVI tentaram muito anchos
e triunfantes estabelecer no Brasil uma colônia exclusivamente branca e daqui
se retiraram quase sem deixar traços de sua ação colonizadora. O que deixaram
foi em areia de praia; ou então em recifes por onde andaram se agarrando os mais
persistentes dos companheiros de Villegaignon antes de abandonarem
definitivamente as costas brasileiras. A estes, sim, poderia Frei Vicente do
Salvador ter chamado de caranguejos: limitaram-se com efeito a arranhar o
litoral.
Gilberto Freyre
Casa-Grande & Senzala
quinta-feira, 14 de março de 2013
DE DIANTE PRA TRÁS
Daí, deu: bala beija-florou. Zuos ― ao que rachavam
ombreiras das janelas, estraçalhavam, esfarelavam fasquia. Umas que caíam quase
como colhidas, no assoalho do chão ― tinham dansado de ricochete ― e ficavam
para lá, amolgadas, feito pedaço de cano, ou aveladas de maduras. Essas podiam
se esfriar, de vagarinho. Perdiam sem valia aquele feio calor, que podia ter
sido a vida de uma pessoa. O José Gervásio e o Araruta recuaram para o meio da
sala, me recomendaram me acautelasse. Mas eu permaneci. Disse que não, não,
não. Minhas duas mãos tinham tomado um tremer, que não era de medo fatal.
Minhas pernas não tremiam. Mas os dedos se estremecitavam esfiapado, sacudindo,
curvos, que eu tocasse sanfona. Aí, gritei: ― “Estrumes!” Deram fuzilada. Fogo
fechado, as cargas de pólvora e o despejar e assoviar ― como o vento ronda, no
final das águas... Mesmo assim eu queria e visava, dali não saí, do vão aberto,
não dando de meu poder. Desfechei bem. Por mim, meu desprezo, como essas
assoviantes deles varejavam... Eu não estava caçando a morte ― o senhor bem me
entenda. Eu queria era a coragem maior. Macho com meu fuzil reiuno, dei salvas.
Tive fechado o corpo? Quero que não; não pergunto. Não morri e matei. E vi. Sem
perigo de minha pessoa.
Aí, quando foi, momental, peguei susto: lá em baixo,
muito estava demudando. Só se fez que, inesperadamente, parte do povo do
Hermógenes, que tantos eram ― a rascorja! ― tinham alcançado de rodear por trás
da minha gente, na ponta da rua, tomando retaguarda. Iam vencer, fosse
possível? Temi por todos. Ah, não, que não regiam. D’ind’hoje, o amigo meu João
Vaqueiro eu estou vendo: mais homem, mais moreno, arrenegando de todos os
macacos, nem suor ele não desperdiçava... o que ele vestiu, vestiu, couro é...
e vai embora, dando muito as costas... lá adiante, acometendo, contra outros
outros... Morreu, que mataram. Em obra de umas cem braças.
Ah, não! Os nossos agüentavam o relance, arre
disparando, a mastro de balas; foi um fogo...
E eu, hesitado nos meus pés, refiz fé: teve o
instante, eu sabia meu dever de fazer. Descer para lá, me ajuntar com os meus,
para ajudar? Não podia, não devia de; daí, conheci. Ali, um homem, um chefe,
carecia de ficar ― naquele meu lugar, no sobrado. Mas, resoluto, mandei ao
Araruta e ao José Gervásio, que fossem, mas fossem! Eles mesmos queriam ir.
Eles desceram a escada. Estado daquele fogo era um pipoco mal-acreditado. Tudo
não sendo guerra? ― entendi. Um panelão na trempe, o que se cozinhava...
Sobrestive. Surgindo o fim, eu restava desandado ao para trás, sozinho só, com
os dois. O menino Guirigó ― uma mão apertando as costas da outra, seguidos
esses estremecimentos, repuxava a cara, mas com os beiços abertos em dor, tudo
uma careta. Ele era um menino. E o cego Borromeu fechava os olhos.
Tive pena. Não ouvi nada; eu disse: ― Vocês têm paciência , meus filhos. O mundo é
meu, mas é demorado...” A arte que prometi: que, mais baque, mais retumbo,
a gente ganhava! Antes bati uma palmada firme, no liso da minha coronha. A
vitória! Ah ― a vitória ― eu no meio dela, que com os ventos arrastado...
E não era? Durou dali a meia-hora, nem bem, e
vislumbrei outro alvoroço, mas da ponta da outra banda, e festivo para mim, me
dando milagre. ― Eh, do ar! Eh, dunga! Ao que era que
tal era que: repentemente, o pessoal meu
do Cererê-Velho, sequazes de João Goanhá suprachegavam também, enfrentando os
hermógenes pelas costas ― davam a toda retaguarda! De alegre ser, destampei
tiro sobre tiro. A guerra, agora, tinha ficado enorme.
João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.
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