quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

MINHA TERRA TEM PALMEIRAS



Os indivíduos de valor, guerreiros, administradores, técnicos, eram por sua vez deslocados pela política colonial de Lisboa como peças num tabuleiro de gamão: da Ásia para a América ou daí para a África, conforme conveniências de momento  ou de religião. A Duarte Coelho, enriquecido pela experiência da Índia, entrega Dom João III a nova capitania de Pernambuco; seus filhos, Jorge e Duarte de Albuquerque, adestrados nos combates contra índios americanos, são chamados às guerras mais ásperas na África; da Madeira vêm para os engenhos do norte do Brasil  técnicos no fabrico do açúcar. Aproveitam-se os navios da carreira das Índias para o comércio com a colônia americana. Transportam-se da África para o trabalho agrícola no Brasil nações quase inteiras de negros. Uma mobilidade espantosa. O domínio imperial realizado por um número quase ridículo de europeus correndo de uma para outra das quatro partes do mundo então conhecido como num formidável jogo de quatro cantos.

Quanto à mobilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numerosos na extensão de domínio colonial e na eficácia de ação colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas. Para tal processo prepara-os a íntima convivência, o intercurso social e sexual com raças de cor, invasoras ou vizinhas da Península, uma delas, a de fé maometana, em condições superiores, técnicas e de cultura intelectual e artística, à dos cristãos louros.

O longo contato com os sarracenos deixara idealizada entre os portugueses a figura da moura-encantada, tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual — sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes mal-assombradas —, que os colonizadores vieram encontrar parecido, quase igual, entre as índias nuas e de cabelos soltos do Brasil. Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho e, tanto quanto as nereidas mouriscas, eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e por um pente para pentear os cabelos. Além do que, eram gordas como as mouras. Apenas menos ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se entregando, de pernas abertas, aos “caraíbas” gulosos de mulher.

Em oposição à lenda da moura-encantada, mas sem alcançar nunca o mesmo prestígio, desenvolveu-se a da moura-torta. Nesta vazou-se porventura o ciúme ou a inveja sexual da mulher loura contra a de cor. Ou repercutiu, talvez, o ódio religioso: o dos louros descidos do Norte contra os infiéis de pele escura. Ódio que resultaria mais tarde em toda a Europa na idealização do tipo louro, identificado com personagens angélicas e divinas em detrimento do moreno, identificado com os anjos maus, com os decaídos, os malvados, os traidores. O certo é que, no século XVI, os embaixadores mandados pela República de Veneza às Espanhas a fim de cumprimentarem i rei Felipe II, notaram que em Portugal algumas mulheres das classes altas tingiam os cabelos de “cor loura” e lá na Espanha várias “arrebicavam o rosto de branco e encarnado” para “tornarem a pele, que é algum tanto ou antes muito trigueira, mais alva e rosada, persuadidas de que todas as trigueiras são feias”.

Pode-se, entretanto, afirmar que a mulher morena tem sido a preferida dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor físico. A moda de  mulher loura, limitada aliás às classes altas, terá sido antes a repercussão de influências exteriores do que a expressão de genuíno gosto nacional. Com relação ao Brasil, que o diga o ditado: “Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar”; ditado em que se sente, ao lado do convencionalismo social da superioridade da mulher branca e da  inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata. Aliás, o nosso lirismo amoroso não revela outra tendência senão a glorificação da mulata, da cabocla, da morena celebrada pela beleza dos seus olhos, pela alvura dos seus dentes, pelos seus dengues, quindins e embelegos muito mais do que as “virgens pálidas” e as “louras donzelas”.  Estas surgem num ou noutro soneto, numa ou noutra modinha do século XVI ou XIX. Mas sem o  relevo das outras.


Gilberto Freyre
Casa Grande & Senzala