Os
indivíduos de valor, guerreiros, administradores, técnicos, eram por sua vez
deslocados pela política colonial de Lisboa como peças num tabuleiro de gamão:
da Ásia para a América ou daí para a África, conforme conveniências de
momento ou de religião. A Duarte Coelho,
enriquecido pela experiência da Índia, entrega Dom João III a nova capitania de
Pernambuco; seus filhos, Jorge e Duarte de Albuquerque, adestrados nos combates
contra índios americanos, são chamados às guerras mais ásperas na África; da
Madeira vêm para os engenhos do norte do Brasil
técnicos no fabrico do açúcar. Aproveitam-se os navios da carreira das
Índias para o comércio com a colônia americana. Transportam-se da África para o
trabalho agrícola no Brasil nações quase inteiras de negros. Uma mobilidade
espantosa. O domínio imperial realizado por um número quase ridículo de
europeus correndo de uma para outra das quatro partes do mundo então conhecido
como num formidável jogo de quatro cantos.
Quanto
à mobilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou
nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor
logo ao primeiro e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas
de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e
competir com povos grandes e numerosos na extensão de domínio colonial e na
eficácia de ação colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o
processo pelo qual os portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou
volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas.
Para tal processo prepara-os a íntima convivência, o intercurso social e sexual
com raças de cor, invasoras ou vizinhas da Península, uma delas, a de fé
maometana, em condições superiores, técnicas e de cultura intelectual e
artística, à dos cristãos louros.
O
longo contato com os sarracenos deixara idealizada entre os portugueses a
figura da moura-encantada, tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos,
envolta em misticismo sexual — sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos
ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes mal-assombradas —, que os
colonizadores vieram encontrar parecido, quase igual, entre as índias nuas e de
cabelos soltos do Brasil. Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos,
o corpo pardo pintado de vermelho e, tanto quanto as nereidas mouriscas, eram
doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e por um pente
para pentear os cabelos. Além do que, eram gordas como as mouras. Apenas menos
ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se entregando, de
pernas abertas, aos “caraíbas” gulosos de mulher.
Em
oposição à lenda da moura-encantada, mas sem alcançar nunca o mesmo prestígio,
desenvolveu-se a da moura-torta. Nesta vazou-se porventura o ciúme ou a inveja
sexual da mulher loura contra a de cor. Ou repercutiu, talvez, o ódio
religioso: o dos louros descidos do Norte contra os infiéis de pele escura.
Ódio que resultaria mais tarde em toda a Europa na idealização do tipo louro,
identificado com personagens angélicas e divinas em detrimento do moreno,
identificado com os anjos maus, com os decaídos, os malvados, os traidores. O
certo é que, no século XVI, os embaixadores mandados pela República de Veneza
às Espanhas a fim de cumprimentarem i rei Felipe II, notaram que em Portugal
algumas mulheres das classes altas tingiam os cabelos de “cor loura” e lá na
Espanha várias “arrebicavam o rosto de branco e encarnado” para “tornarem a
pele, que é algum tanto ou antes muito trigueira, mais alva e rosada,
persuadidas de que todas as trigueiras são feias”.
Pode-se,
entretanto, afirmar que a mulher morena tem sido a preferida dos portugueses
para o amor, pelo menos para o amor físico. A moda de mulher loura, limitada aliás às classes
altas, terá sido antes a repercussão de influências exteriores do que a
expressão de genuíno gosto nacional. Com relação ao Brasil, que o diga o
ditado: “Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar”; ditado em
que se sente, ao lado do convencionalismo social da superioridade da mulher
branca e da inferioridade da preta, a
preferência sexual pela mulata. Aliás, o nosso lirismo amoroso não revela outra
tendência senão a glorificação da mulata, da cabocla, da morena celebrada pela
beleza dos seus olhos, pela alvura dos seus dentes, pelos seus dengues,
quindins e embelegos muito mais do que as “virgens pálidas” e as “louras
donzelas”. Estas surgem num ou noutro
soneto, numa ou noutra modinha do século XVI ou XIX. Mas sem o relevo das outras.
Gilberto
Freyre
Casa
Grande & Senzala