Nas dobras da caricatura, na retificação de
Schopenhauer, ao ultrapassar o alteísmo
teológico do panteísmo de Spinoza, sob a máscara pedante de Pangloss, há o
mundo sem Deus, sem tragédia e sem dor, O mysterium
tremendum perde o sentido ante a degradação da criatura, bicho entre bichos, enfermidade da crosta terrestre,
que se abisma no mar, indiferente à sorte do homem. A alegria do mar, com suas
marés inquietas e com seu regaço profundo, ilusão e esperança da epopéia lusa
de outrora, explica o mundo, devora a divindade e amesquinha a sombra que
percorre a terra. “Venha para o Humanitismo; ele é o grande regaço dos
espíritos, o mar eterno com que mergulhei para arrancar de lá a verde” (M. P.
CIX. Dois caminhos conduzem ao mar: a redução das coisas múltiplas a uma só
realidade a identificação do mundo a Deus e não de Deus ao mundo. Neste último
passo , há o vestígio de Deus teísta, apagado pela fé evanescente. Ao
confrontar a divindade e o mundo, opondo-se ao teísmo e ao ateísmo, vibra na
corda mais íntima do panteísta e do monista, um fator irracional,
dessacralizado, contra o centro religioso do universo. A vontade, Pandora ou a
natureza, movidas por um impulso ativo e permanente, sugere sua entidade
metamorfoseada, entidade criada com os pressupostos renovados da teologia. Em
lugar de Deus, com sua aparência e noutra essência, há um demônio sombrio e
atuante, coado sob a luz de valores cristãos. O centro da filosofia será o pandemonismo, o que com uma vela ilumina
o velhoo humanismo filosófico, com outra mal clareia o mal, selvagem e
terrível, que a inversão, que a inversão pacificadora e exótica na substância
original superará e anulará. O Proteu, reduzindo o múltiplo ao uno, esvazia o
uno de sua cor religiosa, não se aproximando, na sua ética, da religião da
humanidade, outra corrente pseudo-religiosa do século XIX. Por atalhos de
índole sistemática, ele se desvia da comunidade cristã e da sociedade fraterna,
parra buscar um túmulo além dos homens e da divindade. Filosofia, na verdade,
de um momento que perdeu a fé, mas não se desprendeu dos valores que incendeiam
a fé, invertendo apenas seus pressupostas.
O demoníaco não se confunde com o diabólico, lembrava
Goethe, mas a passagem do primeiro ao segundo, representa a expressão
individual d realidade superior. O demoníaco é a energia, que está fora do
alcance da razão, penetrando a natureza toda, no mundo visível e no invisível.
Napoleão estaria dotado de força demoníaca, mas Mefistófeles, e espírito que
nega, é apenas diabólico. A terrível presença do demoníaco freqüenta os homens,
colocando-os fora do bem e do mal, desgarrando-se no diabolismo, com a
valorização do pecado, racionalizando as forças da natureza, sem amor às
virtudes. Para ajustar o homem e o mundo ao elã que mora em todas as coisas,
nada mais natural que a inversão ética da velha teologia. Quincas Borba já
havia acentuado que a inveja e o homicídio são passos indiferentes na jornada
de Humanitas. Mas além da virada
ética, o demonismo, para configurar o diabólico, vai à própria criação do
mundo, retificando o Gênese. Deus e o
Diabo colaboram na obra comum, com a significativa primazia do segundo, embora
atue com permissão do altíssimo. “Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o
mundo, foi o Diabo... Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no
pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar
a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança de salvação ou
do benefício” (V. H., Adão e Eva).
Mais tarde, o cantor sem voz Marcolini, depois de muito vinho, volta ao tema, diante
de D. Casmurro atônito. Na grande ópera da vida, “Deus é o poeta. A música é de
Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival
de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerara a precedência que eles tinham na
distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e
mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio ao seu
gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e
ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não
houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal
gênero de recreio era impróprio de sua eternidade. Satanás levou o manuscrito
consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros ─ e
acaso para reconciliar-se com o céu ─ compôs a partitura, e logo que acabou foi
levá-la ao Padre Eterno” (D. C., IX). A recusa do Padre Eterno em ouvir a
música explica os desconcertos “ que a
audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares
em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem
diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim
explica o terceto do Éden. a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão”.
Raymundo Faoro
Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro.
3ª edição. 1988.