domingo, 17 de fevereiro de 2013

GR



Como nos romances de Cavalaria, enumera, em vésperas de batalha, os guerreiros, cada qual com a sua característica. Apenas uma transcrição, entre muitas que poderíamos fazer.

“Para que relembrar, divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas Doido — que xingava nomes até a galho de árvore que em cara dele espanejasse, ou até algum mosquitinho chupador. Do Diodolfo — mexendo os beiços num bisbis: que era que sem preguiça nenhuma rezava baixo, ou repetia coisas de mal, da vida alheia, conversando com si-mesmo. Do Suzarte. tomando olhos de tudo, chão, árvores, poeiras e estilos de vento, para guardar em sua memória aqueles lugares em léu. Do Salústio João em ancas de seu burro; e do Araruta — de toda confiança: esse homem já tinha para mais de umas cem mortes. Do Jiribibe que a recorrer, da guia à culatra, por necessidade de cada coisa ouvir, recontar e saber. Ou do Feliciano que abria muito o olho são, para melhor entender o que  a gente dizia? Tuscaninho Caramé, que cantava, bonita voz, alguma cantiga sentimental. João Concliz, dobrando um assovio comprido sem fim, como esses que são dos tropeiros dos campos goianos? Ou o José do Ponto com o Jacaré tocando os cargueiros, com sua tralha de cozinhar...””

Confrontemos com a enumeração que Francisco de Morais fez dos cavaleiros cristãos, antes da batalha contra os turcos:

“O príncipe  Beraldo e Onistaldo, seu irmão, tiraram armas de ouro manchadas de negro, fojos do mesmo ouro; os elmos da mesma sorte. Polinardo e Francião saíram de verde e roxo, cortadas as cores em tiras, metidas umas por outras, em campo verde, mares de prata. Blandidon e Frisol tiraram as suas de amarelo e negro, à maneira de cunhas, e nos escudos em campo amarelo grifos negros cravados com rosas de ouro. Pompides e Platu traziam armas  de verde compostas de esperança; nos escudos em campo verde, touros brancos que desta devisa se pagava muito Pompides. O príncipe Graciano e Goarim, seu irmão, vieram de branco e verde, as cores extremadas com cordões de ouro, nos escudos em campo branco mares de verde compostos de boninas de muitas cores. Rosamonte e Belizarte vieram de vermelho sem nenhuma outra mistura, nos escudos em campo sanguíneo e esperança morta, como quem já não a havia mister.” (Cap. CLXV — Palmeirim de Inglaterra).

O encontro com o povo dos catrumanos, na região inhóspita é episódio de freqüente correspondência em romances de cavalaria; lembremos a Ilha Encantada onde esteve Clarimundo; a aventura do homem que ia na cadeira, de Percival e Lancelote.

Finalmente o clímax. Alta noite, Riobaldo vai procurar o Demo, e o capeta não aparece. Dali em diante, começa uma demanda medieval, a luta de Deus contra o Diabo, representado pelos “judas”. Não veio o demônio porque Deus estava com o guerreiro. Tanto que ele pronuncia as palavras sagradas que afugentam Satanás e nada acontece. Mas os cavalos passam a adivinhar que Riobaldo, agora, é homem sobrenatural, conserva o cheiro de quem o diabo farejou: aquele gateado, formoso, de imponência e brio, que se abaixa diante dele, depois de quase bolear com o dono, era do diabo e, por isso, gateado. Empina violentamente, mas Riobaldo lhe diz o nome: Barzabu. E porque havia adquirido ascendência sobre o diabo, porque deixara de temê-lo, altas horas na encruzilhada, o cavalo se submete, aceita que o dono lhe mude o nome para Siruiz, manso, doce nome do poeta da neblina.

Assumindo a chefia do bando, é necessário resolver aonde ir, que fazer. Deixa os companheiros, galga um itambé de pedra, muito lisa, e ali pensa. Meio Amadis de Gaula, meio Moisés. “O que eu carecia era de uns instantes sempre meus, para estribar meu uso. Fiquei lá, um tempo. Quando desci, umas coisas eu resolvia.”




M. Cavalcanti Proença
Trilhas no Grande Sertão
Os Cadernos de Cultura 114.
Departamento de Imprensa Nacional.
Rio de Janeiro. 1958.