sábado, 23 de fevereiro de 2013

DE DIANTE PRA TRÁS



─ O senhor supute: lado a lado, somando, derramavam de ser os trezentos e tantos — reinando ao estral de ser jagunços... Teria restado mais algum trabuco simples nos Gerais? Não tinha. E ali era para s confirmar coragem contra coragem, à rasga de se destruír a toda munição. Dessa guisa enrolada: como que lavrar uma guerra de dentro e outra de fora, cada um cercado e cercando. Recompor aquilo, no final. Só com a vitória. Duvidei não. Nasci para ser. Esbarrando aquele momento, era eu, sobrevez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se realçava. E conheci: ofício de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Tão tive! Não tivesse, e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu vencer: ilha em águas claras... Conheci. Enchi minha história. Até que, nisso, alguém se riu de mim, como que escutei. O que era um riso escondido, tão exato em mim, como o meu mesmo, atabafado. Donde desconfiei. Não pensei no que não queria pensar; e certifiquei que isso era idéia falsa próxima; e, então, eu ia denunciar nome, dar a cita: ...Satanão! Sujo!... e dele disse somente — S... Sertão... Sertão...

Na meia-detença, ouvi um limpado de garganta. —Virei para trás. Só era o cego Borromeu, que moveu os braços e as mãos; feio, feito negro que 

— “Você é o Sertão?!”

— “Ossenhor perfeitamém, ossenhor perfeitamém... — ele retorquiu.

— “Voxe, uai! Não entendo...” — tartamelei.

Gago, não: gagaz. Conforme que, quando ia principiar a falar, pressenti que a língua estremecia para trás, e igual assim todas as partes de minha cara, que tremiam — dos beiços, nas faces, até na ponta do nariz e do queixo. Mas me fiz. Que o ato do medo não tive. Mandei o cego se sentar, e ele obedeceu, ele estava no aparvoado; mas não se abancando no banco; que melhor se agachou, ficou agachado. Riu, de me dar nojo. Mas nojo medo é,  é não? Destemor maior Deus não me desse, segundo retornei para a praça da janela, donde eu dava e mandava. Sobreolhava. Ah, mauser e winchester, que assoviamzinho sutil. E chio de espingardão velho antigo. Chumbeou. Há-de varavam. Como refiro, que também eu não persistia ali aparte de tudo, desperdício; mais antes: quem se avultasse, baqueava... Carabina.

Sucinto que se passou, horas tantas, estalos e estrondos estouros, sotrançando no chicotear das balas-balas, sempre disso. Sempremente. Ao constante que eu estive copiando o meu destino. Mas, como vou contar ao senhor?Ao que narro, assim refrio, e esvaziado, luiz-e-silva. O senhor não sabe, o senhor não vê. Conto o que fiz? O senhor adjaz. Que eu manejava na mira. Dava, dava. E que não pronunciei insultos e gritos, mesmo porque minha boca, a modo que naquele preciso tremor, me mal-obedecia. Sapateei, em vez, bati pé de pilão nas tábuas do assoalho tão surdo — o senhor é capaz que escute, como eu escutei? E que o furor da guerra, lá fora, lá em baixo, tomava certa conta de mim que a quase eu deixava de dar fé  dor-de-cabeça, que forte me doía, que doesse vindo do céu da boca, conforme desde, aos poucos, que o fogo tinha começado. E que água não provei bebida, nem cigarro pitei. Esperançando meu destino: desgraça de mim! Eu! Eu...

Como vou contar, e o senhor sentir em meu estado? O senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo? O senhor conheceu Diadorim, meu senhor?!... Ah, o senhor que morte é choro e sofisma — terra funda e ossos quietos... O senhor havia de conceber alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um. O senhor devia de ver homens à mão-tente se matando a crer, com babas raivas! Ou a arte de um: tá-tá, tiro — e o outro vir na fumaça, de à-faca, de re “pelo: quando o que já defunto era quem mais matava... O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou contar.

Tudo estava tão pendurado para o fim... Derradeiro ainda foi, que eu virei para trás, para repreender o cego Borromeu; e que eu estava com dormente dor, nos braços. Sem-ordem daquele cego, estúrdio, agachado lá, cocoral. Só fez que disse, bronco: — “Quem me dê um de-comer?” Respondi ralhei. Ah, há-de-o, singular ficasse, mesmo ali, mascando fumo grosso e cuspindo amarelo e preto... Dei num suor. Vozeiro dele, então, de repente: que principiou a cantar, ele estava cantando um louvado...


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.