quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

DE DIANTE PRA TRÁS



Como os braços me testemunhavam um peso... Mesmo estranhei, quando fui notando que o tiroteio da rua tinha pousado termo; achei que fazia um certo minuto que o fogo teria sopitado... Cessaram, sim. Mas gritavam, vuvu, vavavá de conversa ruim, uns para os outros, de ronda-roda. Haviam de ter desautorizado toda munição? Olhando, desentendi. Atirar eu pudesse? Acho que quis gritar, e esperei, para depoismente, mais tarde. Mesmo o que vi: aquele mexinflol. E que quem saía duma porta, para ir se juntar com o bando de todos  — armou, segurando frente de si engatilhada uma garrucha de dois canos, pôs a mira — que era o catrumano Teofrásio, como se fosse braço-d’armas! E vi, chefiando os dele, o Hermógenes! Chapéu na cabeça era um bandejão redondo... Homem que se desata...

Entendi. O senhor me socorre.

Conheci o que estava para ser: que os dele e os meus tinham cruzado grande e doido desafio, conforme para cumprir se arrumavam, uns e outros, nas duas pontas da rua, debaixo de forma; e a frio desembainhavam. O que vendo, vi Diadorim — movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para encurralar comprido...Tiraram minha voz. Como vinham de lá e de lá, e contra-ranchos, a tomar armas, as cartucheiras de tiracol. Atirar eu pude? A breca torceu e lesou meus braços, estorvados. Pela espinha abaixo, eu suei em fio vertiginoso. Quem era que me desbraçava e me peava, supilando minhas forças? — “Tua honra... Minha honra de homem valente!... — eu me, em mim, gemi: alma que perdeu o corpo. O fuzil caiu de minhas mãos, que nem pude segurar com o queixo e com os peitos. Eu vi minhas agarras não valerem! Até que trespassei de horror, precipício branco.

Diadorim a vir — do topo da rua, punhal em mão, avançar — correndo amouco...

Ai, eles se vinham, cometer. Os trezentos passos. Como eu estava depravado a vivo, quedando. Eles todos, na fúria, tão animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para tramandar uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude. Boca se encheu de cuspes. Babei... Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram... Ao que — fechou o fim e se fizeram. E eu arrevessei, na ânsia por um livramento... Quando quis rezar —e só um pensamento, como raio e raio, que em mim. Que o senhor sabe? Qual: ...o Diabo na rua, no meio do redemunho... O senhor soubesse ... Diadorim — eu queria ver — segurar com os olhos... Escutei o medo claro nos meus dentes... O Hermógenes: desumano, dronho — nos cabelões da barba... Diadorim foi nele... Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só...

E eu estando vendo!Trecheio, aquilo rodou, encarniçados, roldão de tal, cobravam para fora e para dentro, com braços e pernas rodejando, como quem corre, nas entortações. ...O diabo na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios. ...O diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah — mirei e vi — o claro claramente: aí Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou —no vão — e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar! Soluço que não pude, mar que eu queria um socorro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios de arrebatado no momento, foi poder imaginar a minha Nossa-Senhora assentada no meio da igreja... Gole de consolo...Como lá embaixo era fel de morte, sem perdão nenhum. Que enguli vivo. Gemidos de todo ódio. Os urros... Como, de repente, não vi mais Diadorim!No céu, um pano de nuvens... Diadorim! Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer, com ira de tudo... Subi os abismos... De mais longe, agora davam uns tiros, esses tiros vinham de profundas profundezas. Trespassei.

Eu estou depois das tempestades.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.