quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

EMANUEL E FEDERICO



A Samarra ia virando uma fazenda, e toda fazenda abrigava um coitado desses, raramente mais de um. Porquanto eles entre si geravam ódio atreitos à tonta ciumeira. Ali mesmo primeiro tinha vindo um mulato surdo-mudo, a quem não se sabia chamar de que nome — como se descobrir a graça de um surdo-mudo? Chamaram-no então de José de Deus. E esse um era irritadiço e mandrião, mesmo sendo como sendo moço de porte, com arcado para trabalhar; por isso todos aconselharam Manuelzão a que o acertasse na lida mandada, bem podia. Mas, quando assim a nora de Manuelzão lhe deu a entender, o surdo-mudo se enfureceu, e rompeu embora, para o outro lado do rio, e daí para o real longe, a ponto de dele nunca mais se saber. Fora-se gesticulando, aos gungos e guinchos, entendendo-se dissesse que, para trabalhar, então seria em lugar outro, onde não o tivessem desfeiteado.

Tão logo depois apareceu o velho Camilo. Tempo entrante, já rodara pelo arredor,  asilando-se em ranchos ou cafuas mal abandonadas no campo sujo. Era digno e tímido. Olhava para a mão dos outros, como quem espera comida ou pancada. Mas às vezes a gente fitava nele e tinha a vontade de tomar-lhe a benção. Quando viu que o surdo-mudo se fora, chegou-se. Vinha só para poder receber o que lhe dessem. Mas mandaram-lhe que viesse definido e ficasse.

Ao que ficou. Deu o nome, que experimentou escrever, mas não soube, não se alembrou mais, experimentou atoa, com a ponta de um tição preto numa régua do curral. Parou triste. Camilo José dos Santos... E informou idade de oitenta anos para fora: tinha uns oito ou dez, na Alforria do Cativeiro. Nascera no Riacho dos Machados e acabara de se criar em Coração de Jesus de Inconfidência. À vista, não se percebia fosse tão idoso. Desde os pés espalhados, ele vinha para cima retaco, baixote, poucos fios de barba no queixo, poucas carquilhas nos cantos do rosto clareado austero, fundos olhos azuis, calvície nenhuma, e regularmente grisalho o cabelo, tosado baixo. Seria talvez de todos os homens dali o mais branco, e o de mais apuradas feições, talvez mesmo mais que o Manuelzão. A vida não lhe desfizera um certo decoro antigo, um siso de respeito de sua figuração. Quem sabe, nos remotos, o povo dele não tinham sido homens de mandar em homens e de tomar à força coisas demais, para terem?

Para a festa, tinham-lhe feito uma roupa nova, de riscado escuroso, paletó, camisa e calça do mesmo pano, áspero, muito durável. Ele nada pedira. Mas apreciara-a, que nem que um milagre o tivesse envolvido. Ficou com as mãos sobrando, mudou o modo de sua seriedade, se alisava. Não sabia como se permanecer. A nora de Manuelzão mandara costurar a roupa, e tudo correntio, sem menção, sem avisos, como fizera para o marido, o sogro, os filhos, ninguém podia ficar sem terno novo para a festa, a caridade formava suas regras num estipêndio vezeiro.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
em Corpo de Baile I
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.