A
Samarra ia virando uma fazenda, e toda fazenda abrigava um coitado desses,
raramente mais de um. Porquanto eles entre si geravam ódio atreitos à tonta
ciumeira. Ali mesmo primeiro tinha vindo um mulato surdo-mudo, a quem não se
sabia chamar de que nome — como se descobrir a graça de um surdo-mudo?
Chamaram-no então de José de Deus. E esse um era irritadiço e mandrião, mesmo
sendo como sendo moço de porte, com arcado para trabalhar; por isso todos
aconselharam Manuelzão a que o acertasse na lida mandada, bem podia. Mas,
quando assim a nora de Manuelzão lhe deu a entender, o surdo-mudo se enfureceu,
e rompeu embora, para o outro lado do rio, e daí para o real longe, a ponto de
dele nunca mais se saber. Fora-se gesticulando, aos gungos e guinchos,
entendendo-se dissesse que, para trabalhar, então seria em lugar outro, onde
não o tivessem desfeiteado.
Tão
logo depois apareceu o velho Camilo. Tempo entrante, já rodara pelo
arredor, asilando-se em ranchos ou
cafuas mal abandonadas no campo sujo. Era digno e tímido. Olhava para a mão dos
outros, como quem espera comida ou pancada. Mas às vezes a gente fitava nele e
tinha a vontade de tomar-lhe a benção. Quando viu que o surdo-mudo se fora,
chegou-se. Vinha só para poder receber o que lhe dessem. Mas mandaram-lhe que
viesse definido e ficasse.
Ao
que ficou. Deu o nome, que experimentou escrever, mas não soube, não se
alembrou mais, experimentou atoa, com a ponta de um tição preto numa régua do
curral. Parou triste. Camilo José dos Santos... E informou idade de oitenta
anos para fora: tinha uns oito ou dez, na Alforria do Cativeiro. Nascera no
Riacho dos Machados e acabara de se criar em Coração de Jesus de Inconfidência.
À vista, não se percebia fosse tão idoso. Desde os pés espalhados, ele vinha
para cima retaco, baixote, poucos fios de barba no queixo, poucas carquilhas
nos cantos do rosto clareado austero, fundos olhos azuis, calvície nenhuma, e
regularmente grisalho o cabelo, tosado baixo. Seria talvez de todos os homens
dali o mais branco, e o de mais apuradas feições, talvez mesmo mais que o
Manuelzão. A vida não lhe desfizera um certo decoro antigo, um siso de respeito
de sua figuração. Quem sabe, nos remotos, o povo dele não tinham sido homens de
mandar em homens e de tomar à força coisas demais, para terem?
Para
a festa, tinham-lhe feito uma roupa nova, de riscado escuroso, paletó, camisa e
calça do mesmo pano, áspero, muito durável. Ele nada pedira. Mas apreciara-a,
que nem que um milagre o tivesse envolvido. Ficou com as mãos sobrando, mudou o
modo de sua seriedade, se alisava. Não sabia como se permanecer. A nora de
Manuelzão mandara costurar a roupa, e tudo correntio, sem menção, sem avisos,
como fizera para o marido, o sogro, os filhos, ninguém podia ficar sem terno
novo para a festa, a caridade formava suas regras num estipêndio vezeiro.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
em
Corpo de Baile I
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.