O
que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a
européia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista
encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua
economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram
ou se hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a
flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é
que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do
Brasil, a formação sui generis da
sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos.
Vários
antecedentes dentro desse de ordem geral — bicontinentalidade, ou antes,
dualismo de cultura e de raça — impõem-se à nossa atenção em particular: um dos
quais a presença, entre os elementos que se juntaram para formar a nação
portuguesa, dos de origem ou estoque semita, gente de uma mobilidade, de uma
plasticidade, de uma adaptabilidade tanto social como física que facilmente se
surpreendem no português navegador e cosmopolita do século XV. Hereditariamente
predisposto à vida nos trópicos por um longo habitat tropical, o elemento semita, móvel e adaptável como nenhum
outro, terá dado ao colonizador português do Brasil algumas das suas principais
condições físicas e psíquicas de êxito e de resistência. Entre outras, o
realismo econômico que desde cedo corrigiu os excessos de espírito militar e
religioso na formação brasileira.
A
mobilidade foi um dos segredos da vitória portuguesa; sem ela não se explicaria
ter um Portugal quase sem gente, um pessoalzinho ralo, insignificante em número
— sobejo de quanta epidemia, fome e sobretudo guerra afligiu a Península na
Idade Média — conseguido salpicar virilmente do seu resto de sangue e de
cultura populações tão diversas e a tão grandes distâncias umas das outras: na
Ásia, na África, na América, e numerosas ilhas e arquipélagos.A escassez de
capital-homem, supriram-na os portugueses com extremos de mobilidade e
miscibilidade: dominando espaços enorme e onde quer que pousassem, na África ou
na América, emprenhando mulheres e fazendo filhos , numa atividade genésica que
tanto tinha de violentamente instintiva da parte do indivíduo quanto de
política, de calculada, de estimulada por evidentes razões econômicas e
políticas da parte do Estado.
Gilberto
Freyre
Casa-Grande & Senzala