Lembro-me
perfeitamente da cena. O gabinete pequeno se transformara numa espécie de loja:
montes de fazenda e cadernos, que oferecíamos às crianças pobres. Findo o
expediente, sucedia retardar-me ali, a escrever, esquecia-me do tempo, e às
vezes, meia-noite, o guarda vinha dizer-me que iam fechar o portão do palácio.
Parte do meu último livro fora composto no bureau largo, diante de petições, de
números do Literatura Internacional.
Naquela noite, acanhado, olhando pelas janelas os canteiros do jardim, as
árvores da praça dos Martírios, Rubem me explicava que Osman Loureiro, o
governador, se achava em dificuldade: não queria demitir-me sem motivo, era
necessário o meu afastamento voluntário. Ora, motivo há sempre, motivo se
arranja. Evidentemente era aquilo início de uma perseguição que Osman não podia
evitar: constrangido por forças consideráveis, vergava; se quisesse resistir,
naufragaria. Não presumi que nele houvesse perfídia. Sempre se revelara
razoável, nunca entre nós houvera choque. Provavelmente se perturbava como eu.
Conversei com Rubem, sem melindres, revolvendo as gavetas, procurando papéis
meus. Os integralistas serravam de cima, era o diabo. Demissão ninguém me
forçaria a pedir. Havia feito isso várias vezes, inutilmente; agora não iria acusar-me.
Dessem-me de qualquer jeito, por conveniência de serrviço.
Despedi-me
de Rubem Loureiro e deixei sobre o bureau os volumes do Literatura Internacional. Essa matéria, na safadeza e na burrice
dominantes naquela época, render-me-ia talvez um processo. Iriam dr. Sidrônio e
Luccarini, meus companheiros de trabalho, passar vexame por minha causa? Não.
Dr. Sidrônio era católico, não escrevia, como eu, livros perigosos nem se
gastava em palestras inconvenientes nos cafés. Provavelmente me substituiria. Luccarini
tinha sido meu inimigo. Apanhado certa vez em falta e censurado, replicara-me:
— Eu
também já mandei. Mas quando queria dizer isso que o senhor está dizendo,
chamava o sujeito particularmente.
—
Ora essa! O senhor chega tarde, larga a banca e vive passeando pelas seções
alheias em público.
Luccarini
voltara ao seu lugar e durante três meses fora de uma pontualidade irritante.
Era o primeiro a chegar, o último a sair, não se levantava nem para ir ao
mictório. Também não fazia nada, inércia completa. Na rua, se me via, fechava a
cara, enrugava-se com dignidade excessiva. Isso não tinha importância, mas o
procedimento na repartição irritava-me.
—
Como vai Luccarini? perguntava Osman.
—
Pessimamente . É um preguiçoso.
Osman
contradizia-me e gabava aquela inutilidade. Não me conformava. E dera graças a
Deus quando Luccarini se ausentara, passara seis meses no Recife, curando uma
sinusite, com todos os vencimentos. Ao voltar, agradecera-me um obséquio não
feito, apresentara-me um relatório não encomendado, insinuara-me a compra de um
fichário e o abandono daqueles horríveis calhamaços onde o registro das
professoras se fragmentava e confundia. Agora trabalhava demais, em poucos
meses corrigira aquela balbúrdia.
Saí
do palácio, atordoado. Eximia-me de obrigações cacetes, mas isso continuava a
aperrear-me, juntava-se a amolações domésticas e a planos vagos. Sentia
desgosto e vergonha, desejava ausentar-me para muito longe, não pensar em
despachos e informações. Andei pelas ruas, tomei o bonde. Transeuntes e
passageiros pareciam conhecer o desagradável sucesso, ler-me no rosto a
inquietação. Evitava considerar-me vítima de uma injustiça: deviam ter razão
para repelir-me. Seria bom que ela se publicasse no jornal, isto desviaria
comentários maliciosos. Esforçava-me por julgar aquilo uma insignificância. Já
me havia achado em situação pior, sem emprego, numa cama de hospital, a barriga
aberta, filhos pequenos, o futuro bem carregado. Tinha agora uns projetos
literários, indecisos. Certamente não se realizariam, mas anulavam desavenças
conjugais intempestivas, que se vinham amiudando e intensificando sem causa. A
lembrança dessas querelas, somada aos telefonemas e à demissão, azedou-me a
viagem a Pajuçara. Indispensável refugiar-me no romance concluído, imaginá-lo
na livraria, despertando algum interesse, possibilitando ainda uma vez mudança
de profissão. A última, encerrada meia hora antes, tinha sido um horror: o
regulamento, o horário, o despacho, o decreto, a portaria, a iniqüidade, o
pistolão, sobretudo a certeza de sermos uns desgraçados trambolhos, de quase
nada podermos fazer na sensaboria da rotina. Se não me houvessem despedido
assim de chofre, com um recado, humilhantemente, poderia até julgar aquilo um
benefício.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume – Viagens.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.