terça-feira, 8 de janeiro de 2013

G. RAMOS



Lembro-me perfeitamente da cena. O gabinete pequeno se transformara numa espécie de loja: montes de fazenda e cadernos, que oferecíamos às crianças pobres. Findo o expediente, sucedia retardar-me ali, a escrever, esquecia-me do tempo, e às vezes, meia-noite, o guarda vinha dizer-me que iam fechar o portão do palácio. Parte do meu último livro fora composto no bureau largo, diante de petições, de números do Literatura Internacional. Naquela noite, acanhado, olhando pelas janelas os canteiros do jardim, as árvores da praça dos Martírios, Rubem me explicava que Osman Loureiro, o governador, se achava em dificuldade: não queria demitir-me sem motivo, era necessário o meu afastamento voluntário. Ora, motivo há sempre, motivo se arranja. Evidentemente era aquilo início de uma perseguição que Osman não podia evitar: constrangido por forças consideráveis, vergava; se quisesse resistir, naufragaria. Não presumi que nele houvesse perfídia. Sempre se revelara razoável, nunca entre nós houvera choque. Provavelmente se perturbava como eu. Conversei com Rubem, sem melindres, revolvendo as gavetas, procurando papéis meus. Os integralistas serravam de cima, era o diabo. Demissão ninguém me forçaria a pedir. Havia feito isso várias vezes, inutilmente; agora não iria acusar-me. Dessem-me de qualquer jeito, por conveniência de serrviço.

Despedi-me de Rubem Loureiro e deixei sobre o bureau os volumes do Literatura Internacional. Essa matéria, na safadeza e na burrice dominantes naquela época, render-me-ia talvez um processo. Iriam dr. Sidrônio e Luccarini, meus companheiros de trabalho, passar vexame por minha causa? Não. Dr. Sidrônio era católico, não escrevia, como eu, livros perigosos nem se gastava em palestras inconvenientes nos cafés. Provavelmente me substituiria. Luccarini tinha sido meu inimigo. Apanhado certa vez em falta e censurado, replicara-me:

— Eu também já mandei. Mas quando queria dizer isso que o senhor está dizendo, chamava o sujeito particularmente.

— Ora essa! O senhor chega tarde, larga a banca e vive passeando pelas seções alheias em público.

Luccarini voltara ao seu lugar e durante três meses fora de uma pontualidade irritante. Era o primeiro a chegar, o último a sair, não se levantava nem para ir ao mictório. Também não fazia nada, inércia completa. Na rua, se me via, fechava a cara, enrugava-se com dignidade excessiva. Isso não tinha importância, mas o procedimento na repartição irritava-me.

— Como vai Luccarini? perguntava Osman.

— Pessimamente . É um preguiçoso.

Osman contradizia-me e gabava aquela inutilidade. Não me conformava. E dera graças a Deus quando Luccarini se ausentara, passara seis meses no Recife, curando uma sinusite, com todos os vencimentos. Ao voltar, agradecera-me um obséquio não feito, apresentara-me um relatório não encomendado, insinuara-me a compra de um fichário e o abandono daqueles horríveis calhamaços onde o registro das professoras se fragmentava e confundia. Agora trabalhava demais, em poucos meses corrigira aquela balbúrdia.

Saí do palácio, atordoado. Eximia-me de obrigações cacetes, mas isso continuava a aperrear-me, juntava-se a amolações domésticas e a planos vagos. Sentia desgosto e vergonha, desejava ausentar-me para muito longe, não pensar em despachos e informações. Andei pelas ruas, tomei o bonde. Transeuntes e passageiros pareciam conhecer o desagradável sucesso, ler-me no rosto a inquietação. Evitava considerar-me vítima de uma injustiça: deviam ter razão para repelir-me. Seria bom que ela se publicasse no jornal, isto desviaria comentários maliciosos. Esforçava-me por julgar aquilo uma insignificância. Já me havia achado em situação pior, sem emprego, numa cama de hospital, a barriga aberta, filhos pequenos, o futuro bem carregado. Tinha agora uns projetos literários, indecisos. Certamente não se realizariam, mas anulavam desavenças conjugais intempestivas, que se vinham amiudando e intensificando sem causa. A lembrança dessas querelas, somada aos telefonemas e à demissão, azedou-me a viagem a Pajuçara. Indispensável refugiar-me no romance concluído, imaginá-lo na livraria, despertando algum interesse, possibilitando ainda uma vez mudança de profissão. A última, encerrada meia hora antes, tinha sido um horror: o regulamento, o horário, o despacho, o decreto, a portaria, a iniqüidade, o pistolão, sobretudo a certeza de sermos uns desgraçados trambolhos, de quase nada podermos fazer na sensaboria da rotina. Se não me houvessem despedido assim de chofre, com um recado, humilhantemente, poderia até julgar aquilo um benefício.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume – Viagens.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1953.