quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

G. RAMOS



O essencial era retirar-me de Alagoas e nunca mais voltar, esquecer tudo, coisas, fatos e pessoas. Alagoas não me fizera mal nenhum, mas, responsabilizando-a pelos meus desastres, devo ter-me involuntariamente considerado autor de qualquer obra de vulto, não reconhecida. Moderei a explosão de vaidade besta: impossível contrapor-me a homens e terra, a todos os homens e a toda a terra, vinte e oito mil quilômetros quadrados e um milhão de habitantes. Essa horrível presunção de selvagem tinha um mérito: vedava-me identificar inimigos, dirigir ódio a alguém. O ódio se dispersava, diluía-se, era uma indeterminada repugnância morna, alcançava os edifícios, o morro do Farol, o Aterro, a praia, coqueiros e navios repisados no último romance, inédito, feito aos arrancos, com largos intervalos. Certas passagens desse livro não me descontentavam, mas era preciso refazê-lo, suprimir repetições inúteis, eliminar pelo menos um terço dele. Necessário meter-me no interior, passar meses trancado, riscando linhas, condensando observações espalhadas. Não, porém, no interior de Alagoas: indispensável fugir a indivíduos que me conhecessem. Era pouco não tornar a pôr os pés no palácio dos Martírios: queria evitar indiscretos que me houvessem visto manuseando os horríveis papéis sujos.

Não me lembrava das pessoas. Osman, dr. Sidrônio e Luccarini eram sujeitos decentes. Mas a engrenagem onde havíamos entrado nos sujava. Tudo uma porcaria. Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso, dávamos um salto perigoso, descontentávamos incapacidades abundantes. Essas incapacidades deviam aproveitar-se de qualquer modo, cantando hinos idiotas, emburrando as crianças. O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam agüentar políticos safados e generais analfabetos? Necessário reconhecer que a professora mulata não havia sido transferida e elevada por mim: fora transferida por uma idéia, pela idéia de aproveitar elementos dignos, mais ou menos capazes. Isso desaparecia. E os indivíduos que haviam concorrido para isso desapareciam também. Excelente que Osman, em cima, e Luccarini, em baixo, continuassem. Não continuariam muito tempo. Ficava a estupidez: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”. Para que meter semelhante burrice na cabeça das crianças, Deus do céu? Realmente eu havia sido ali uma excrescência, uma excrescência agora amputada, a rodar no bonde, a olhar navios e coqueiros. De certo modo as ameaças dos telefonemas me agradavam; embora indeterminadas, indicavam mudança, forçar-me-iam a azeitar as articulações perras. Conservara-me regulamentar e besta mais de três anos, numa cadeira giratória, manejando carimbos, assinando empenhos, mecânico, a deferir e indeferir de acordo com as informações de seu Benedito, realmente obedecendo a seu Benedito. Que diabo me fariam? Imaginei um desacato, tirou ou facadas, em hora de movimento, no relógio oficial. Osman me perguntara certa vez:

— Você anda desarmado? Em que é que você confia, criatura?

Depois disso José Auto me emprestara um revólver, mas o revólver tinha apenas três balas e de ordinário ficava nas gavetas, era difícil encontrá-lo. Fora um alívio a restituição. Ia fazer-me falta quando me agredissem. Foi o que imaginei: uma agressão pública, muitos integralistas atacando-me, furando-me, partindo, partindo-me as costelas, os braços e a cabeça. Recolhi-me.

Na casinha de Pajuçara fiquei até a madrugada consertando as últimas páginas do romance. Os consertos não me satisfaziam: indispensável recopiar tudo, suprimir as repetições excessivas. Alguns capítulos não me pareciam muito ruins, e isto fazia que os defeitos medonhos avultassem. O meu Luís da Silva era um falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda a parte. Aquele assassinato, realizado em vinte e sete dias de esforço, com razoável gasto de café e aguardente, dava-me impressão de falsidade. Realmente eu era um assassino bem chinfrim. O delírio final se atamancara numa noite, e fervilhava de redundâncias. Enfim não era impossível canalizar esses derramamentos. O diabo era que no livro abundavam desconexões, talvez irremediáveis. Necessário ainda suar muito para minorar as falhas evidentes. Mas onde achar sossego? Minha mulher vivia a atenazar-me com uma ciumeira incrível, absolutamente desarrazoada. Eu devia enganá-la e vingar-me, se tivesse jeito para essas coisas. Agora, com a demissão, as contendas iriam acirrar-se, enfurecer-me, cegar-me, inutilizar-me dias inteiros, deixar-me apático e vazio, aborrecendo o manuscrito. Largara-o duas vezes, estivera um ano sem vê-lo, machucara folhas e rasgara folhas. As interrupções e as discórdias sucessivas deviam ser causa daqueles altos e baixos, daquelas impropriedades. Conveniente isolar-me, a idéia da viagem continuava a perseguir-me. De que modo realizá-la? Havia uma penca de filhos, alguns bem miúdos. E restava-me na carteira um conto e duzentos. Apenas.


Graciliano Ramos
Memórias do Cárcere
1º volume – Viagens
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1953.