O
essencial era retirar-me de Alagoas e nunca mais voltar, esquecer tudo, coisas,
fatos e pessoas. Alagoas não me fizera mal nenhum, mas, responsabilizando-a
pelos meus desastres, devo ter-me involuntariamente considerado autor de
qualquer obra de vulto, não reconhecida. Moderei a explosão de vaidade besta:
impossível contrapor-me a homens e terra, a todos os homens e a toda a terra,
vinte e oito mil quilômetros quadrados e um milhão de habitantes. Essa horrível
presunção de selvagem tinha um mérito: vedava-me identificar inimigos, dirigir
ódio a alguém. O ódio se dispersava, diluía-se, era uma indeterminada
repugnância morna, alcançava os edifícios, o morro do Farol, o Aterro, a praia,
coqueiros e navios repisados no último romance, inédito, feito aos arrancos,
com largos intervalos. Certas passagens desse livro não me descontentavam, mas
era preciso refazê-lo, suprimir repetições inúteis, eliminar pelo menos um
terço dele. Necessário meter-me no interior, passar meses trancado, riscando
linhas, condensando observações espalhadas. Não, porém, no interior de Alagoas:
indispensável fugir a indivíduos que me conhecessem. Era pouco não tornar a pôr
os pés no palácio dos Martírios: queria evitar indiscretos que me houvessem
visto manuseando os horríveis papéis sujos.
Não
me lembrava das pessoas. Osman, dr. Sidrônio e Luccarini eram sujeitos
decentes. Mas a engrenagem onde havíamos entrado nos sujava. Tudo uma porcaria.
Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida
para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso, dávamos um salto
perigoso, descontentávamos incapacidades abundantes. Essas incapacidades deviam
aproveitar-se de qualquer modo, cantando hinos idiotas, emburrando as crianças.
O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam agüentar políticos
safados e generais analfabetos? Necessário reconhecer que a professora mulata
não havia sido transferida e elevada por mim: fora transferida por uma idéia,
pela idéia de aproveitar elementos dignos, mais ou menos capazes. Isso
desaparecia. E os indivíduos que haviam concorrido para isso desapareciam
também. Excelente que Osman, em cima, e Luccarini, em baixo, continuassem. Não
continuariam muito tempo. Ficava a estupidez: “Ouviram do Ipiranga as margens
plácidas”. Para que meter semelhante burrice na cabeça das crianças, Deus do
céu? Realmente eu havia sido ali uma excrescência, uma excrescência agora
amputada, a rodar no bonde, a olhar navios e coqueiros. De certo modo as
ameaças dos telefonemas me agradavam; embora indeterminadas, indicavam mudança,
forçar-me-iam a azeitar as articulações perras. Conservara-me regulamentar e
besta mais de três anos, numa cadeira giratória, manejando carimbos, assinando
empenhos, mecânico, a deferir e indeferir de acordo com as informações de seu
Benedito, realmente obedecendo a seu Benedito. Que diabo me fariam? Imaginei um
desacato, tirou ou facadas, em hora de movimento, no relógio oficial. Osman me
perguntara certa vez:
—
Você anda desarmado? Em que é que você confia, criatura?
Depois
disso José Auto me emprestara um revólver, mas o revólver tinha apenas três
balas e de ordinário ficava nas gavetas, era difícil encontrá-lo. Fora um
alívio a restituição. Ia fazer-me falta quando me agredissem. Foi o que
imaginei: uma agressão pública, muitos integralistas atacando-me, furando-me,
partindo, partindo-me as costelas, os braços e a cabeça. Recolhi-me.
Na
casinha de Pajuçara fiquei até a madrugada consertando as últimas páginas do
romance. Os consertos não me satisfaziam: indispensável recopiar tudo, suprimir
as repetições excessivas. Alguns capítulos não me pareciam muito ruins, e isto
fazia que os defeitos medonhos avultassem. O meu Luís da Silva era um
falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda
a parte. Aquele assassinato, realizado em vinte e sete dias de esforço, com
razoável gasto de café e aguardente, dava-me impressão de falsidade. Realmente
eu era um assassino bem chinfrim. O delírio final se atamancara numa noite, e
fervilhava de redundâncias. Enfim não era impossível canalizar esses
derramamentos. O diabo era que no livro abundavam desconexões, talvez
irremediáveis. Necessário ainda suar muito para minorar as falhas evidentes.
Mas onde achar sossego? Minha mulher vivia a atenazar-me com uma ciumeira
incrível, absolutamente desarrazoada. Eu devia enganá-la e vingar-me, se
tivesse jeito para essas coisas. Agora, com a demissão, as contendas iriam
acirrar-se, enfurecer-me, cegar-me, inutilizar-me dias inteiros, deixar-me
apático e vazio, aborrecendo o manuscrito. Largara-o duas vezes, estivera um
ano sem vê-lo, machucara folhas e rasgara folhas. As interrupções e as
discórdias sucessivas deviam ser causa daqueles altos e baixos, daquelas
impropriedades. Conveniente isolar-me, a idéia da viagem continuava a
perseguir-me. De que modo realizá-la? Havia uma penca de filhos, alguns bem
miúdos. E restava-me na carteira um conto e duzentos. Apenas.
Graciliano
Ramos
Memórias
do Cárcere
1º
volume – Viagens
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1953.