quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

DE DIANTE PRA TRÁS



O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.

Conforme conto. Como retornei, tarde depois, mal sabendo de mim, e querendo emendar nó no tempo, tateando com meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os rogos do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus braços, reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acordo, dado ataque, mas que não tivesse espumado nem babado. Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava recebendo socorro de outros — o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o Acauã —: que molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água. Eu despertei de todo — como no instante em que o trovão não acabou de rolar até ao fundo, e se sabe que caiu o raio...

Diadorim tinha morrido — mil-vezes-mente — para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram.

— “E a guerra?!” — eu disse.

— “Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!... João Goanhá e o Fafafa, com um dos nossos, ainda seguiram perseguindo os restos, derradeira demão...” — João Concliz deu resposta. — “O Hermógenes está morto, remorto matado...” — quem falou foi o João Curiol. Morto... Remorto... O do Demo... Havia nenhum Hermógenes mais. Assim de certo resumido — do jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra todo, no vão-do-pescoço: já ficou amarelo completo, oca de terra, semblante puxado escarnecente, como quem da gente se quer rir — cara sepultada... Um Hermógenes.

Nas vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando: por tanto que, assim tristonhamente, a gente vencia. Sobresseguida à doideira de mão-de-guerra na rua, João Goanhá tinha carregado em cima dos bandidos deles que estavam dando retaguarda, e com eles rebentado... Aquilo não fazia razão. Suspendi. Suspendi minhas mãos. Vi que podia. Só o corpo me estivesse meio duro, as pernas teimando em se entesar, num emperro, que às vezes me empalhava. Sendo que me levantei, sustentando , e caminhei os passos; as costas para a janela eu dava.

Nesse ponto, foi que o Alaripe e o Quipes vinham chegando. Notícia de Otacília me dessem; eu custava a me lembrar de tantas coisas. Aqueles dois vinham alheios, do que vinham, desiludidos da viagem deles:

— “Era a vossa noiva não, Chefe...” — o que Alaripe relatava. — “o homem se chamava só Adão Lemes, indo conduzindo a irmã dele, fazendeira, cujo nome é Aesmeralda ... Iam de volta para suas casas... Os que, então, no Porto-do-Ci deixamos, na barra do Caatinga...

Tanta gente tinha o mundo...  — eu pensei. Tanta vida para a discórdia. Agradeci ao Alaripe, mas virei para os outros nossos; perguntei:

— “Mortos, muitos?”

— “Demais...”

Isto o João Curiol me respondeu, prestativamente, sistema de amigo. Solucei em seco, debaixo do nada. Agora um me dizendo: que, com as ferramentas, uns estavam trabalhando de abrir covas, revezados. Alaripe fez um cigarro, queria dar para mim; que rejeitei. — “ É o Hermógenes?”— aí foi o que o Alaripe perguntou.


João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.