O
senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo...
Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do
senhor, algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão?
Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que
vem do Céu. Eu sei.
Conforme
conto. Como retornei, tarde depois, mal sabendo de mim, e querendo emendar nó
no tempo, tateando com meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os rogos
do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus braços,
reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acordo, dado ataque, mas que
não tivesse espumado nem babado. Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava
recebendo socorro de outros — o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o Acauã
—: que molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água. Eu despertei de todo —
como no instante em que o trovão não acabou de rolar até ao fundo, e se sabe
que caiu o raio...
Diadorim
tinha morrido — mil-vezes-mente — para sempre de mim; e eu sabia, e não queria
saber, meus olhos marejaram.
—
“E a guerra?!” — eu disse.
—
“Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!... João Goanhá e o Fafafa, com
um dos nossos, ainda seguiram perseguindo os restos, derradeira demão...” —
João Concliz deu resposta. — “O Hermógenes está morto, remorto matado...” —
quem falou foi o João Curiol. Morto... Remorto... O do Demo... Havia nenhum
Hermógenes mais. Assim de certo resumido — do jeito de quem cravado com um rombo
esfaqueante se sangra todo, no vão-do-pescoço: já ficou amarelo completo, oca
de terra, semblante puxado escarnecente, como quem da gente se quer rir — cara
sepultada... Um Hermógenes.
Nas
vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando: por tanto que, assim
tristonhamente, a gente vencia. Sobresseguida à doideira de mão-de-guerra na
rua, João Goanhá tinha carregado em cima dos bandidos deles que estavam dando
retaguarda, e com eles rebentado... Aquilo não fazia razão. Suspendi. Suspendi
minhas mãos. Vi que podia. Só o corpo me estivesse meio duro, as pernas
teimando em se entesar, num emperro, que às vezes me empalhava. Sendo que me
levantei, sustentando , e caminhei os passos; as costas para a janela eu dava.
Nesse
ponto, foi que o Alaripe e o Quipes vinham chegando. Notícia de Otacília me
dessem; eu custava a me lembrar de tantas coisas. Aqueles dois vinham alheios,
do que vinham, desiludidos da viagem deles:
—
“Era a vossa noiva não, Chefe...” — o que Alaripe relatava. — “o homem se
chamava só Adão Lemes, indo conduzindo a irmã dele, fazendeira, cujo nome é
Aesmeralda ... Iam de volta para suas casas... Os que, então, no Porto-do-Ci
deixamos, na barra do Caatinga...
Tanta
gente tinha o mundo... — eu pensei.
Tanta vida para a discórdia. Agradeci ao Alaripe, mas virei para os outros
nossos; perguntei:
—
“Mortos, muitos?”
—
“Demais...”
Isto
o João Curiol me respondeu, prestativamente, sistema de amigo. Solucei em seco,
debaixo do nada. Agora um me dizendo: que, com as ferramentas, uns estavam trabalhando
de abrir covas, revezados. Alaripe fez um cigarro, queria dar para mim; que
rejeitei. — “ É o Hermógenes?”— aí foi o que o Alaripe perguntou.
João
Guimarães Rosa
Grande
Sertão: Veredas
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.