sábado, 26 de janeiro de 2013

EMANUEL E FEDERICO



Secara, e, de agora, desde os três anos, toda manhã, cada por dia, o Chico Carreiro atrelava suas quatro juntas de bois, e desciam até às Pedras, o carro cheio de latas, para buscar a água do usável. Sempre as crianças o acompanhavam; e, às vezes, o velho Camilo.

Restavam as duas filas de pequenas árvores, se trançando por cima da deixa do riacho, formando escuro um tubo fundo, onde as porcas iam parir seus leitões e as guinés punham ovos. Não se podia derrubar aquela linha de mato, porque, um dia quem sabe, o riachinho podia voltar, sua vala ficava à espera, protegida. Mas, por ora, quem descia à noite, do espigão, do alto campo — quando sabiam que o vento não estava soprando no rumo de levar o cheiro deles ao faro dos cachorros — eram a raposinha rouca e algum ouriço predador; esses se encontravam, caminho em meio, com a miúda irara, zangada, e com o gambá-d’água, que subiam do valezinho florestal do Córrego das Pedras, por sede do sangue quente das criações do galinheiro. E, nas copas do arvoredo, as rolinhas fogo-apagou pregueavam seus ninhos.

A rola fogo-apagou cantava continuado, o dia, mesmo na calada do calor, quando dormiam os outros pássaros. Seu canto sabe sempre se fingir de longe, e ela está perto. Só a ser que deseje domesticar-se, mas lhe faltando um pouquinho mais de valentia necessária, ou conhecendo que não a irão aceitar assim. A mãe de Manuelzão gostava delas, das fogo-apagou. Gostava de todas as criaturas inofensivas e vulneráveis — os meninos, a rolinha pedrês, o velho Camilo.

Por mesmo, se soube que o velho Camilo, sem contar a ninguém, tinha ido rezar na sepultura dela, levar flores , o que no comum nem era muita regra se fazer — flores do campo, pencas douradas do pau-doce, e a do pacari, que é a mais linda que tanto espanta, ou uns simples ramos de assapeixe, que agora em maio era quadra de se abrirem, o rosado e o branco, por toda beira de estrada. Manuelzão isso escutou, e no íntimo se agradara. Mas não o deu a entender, não disse palavra. Sua laia de chefe não o consentia. Ele tinha de ser sério severo nos exemplos. O velho Camilo podia estar com aquelas ações só por caduquice; os outros, a boca-do-povo, podiam não achar decência naquilo, mexer maldade, falario; alguém tinha sobra para dizer que o velho Camilo estivesse solando de adulação, cada um caça e coça. Também ficava injusto aceitar com reconhecimentos aquela lembrança, assim diante dos outros, que na labuta do diário se cansavam, sem tempo nenhum para miudezas, enquanto que o velho Camilo era apenas uma espécie doméstica de mendigo, recolhido, inválido, que ali viera ter e fora adotado por bem-fazer, surgido do mundo do Norte:

— Ele asseste mais é aqui. Às vezes descasca um milhozinho, busca um balde d’água. Mas tudo na vontade dele. Ninguém manda, não...


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
José Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª edição. 1956.