Secara,
e, de agora, desde os três anos, toda manhã, cada por dia, o Chico Carreiro
atrelava suas quatro juntas de bois, e desciam até às Pedras, o carro cheio de
latas, para buscar a água do usável. Sempre as crianças o acompanhavam; e, às
vezes, o velho Camilo.
Restavam
as duas filas de pequenas árvores, se trançando por cima da deixa do riacho,
formando escuro um tubo fundo, onde as porcas iam parir seus leitões e as guinés
punham ovos. Não se podia derrubar aquela linha de mato, porque, um dia quem
sabe, o riachinho podia voltar, sua vala ficava à espera, protegida. Mas, por
ora, quem descia à noite, do espigão, do alto campo — quando sabiam que o vento
não estava soprando no rumo de levar o cheiro deles ao faro dos cachorros —
eram a raposinha rouca e algum ouriço predador; esses se encontravam, caminho
em meio, com a miúda irara, zangada, e com o gambá-d’água, que subiam do
valezinho florestal do Córrego das Pedras, por sede do sangue quente das
criações do galinheiro. E, nas copas do arvoredo, as rolinhas fogo-apagou
pregueavam seus ninhos.
A
rola fogo-apagou cantava continuado, o dia, mesmo na calada do calor, quando
dormiam os outros pássaros. Seu canto sabe sempre se fingir de longe, e ela
está perto. Só a ser que deseje domesticar-se, mas lhe faltando um pouquinho
mais de valentia necessária, ou conhecendo que não a irão aceitar assim. A mãe
de Manuelzão gostava delas, das fogo-apagou. Gostava de todas as criaturas
inofensivas e vulneráveis — os meninos, a rolinha pedrês, o velho Camilo.
Por
mesmo, se soube que o velho Camilo, sem contar a ninguém, tinha ido rezar na
sepultura dela, levar flores , o que no comum nem era muita regra se fazer —
flores do campo, pencas douradas do pau-doce, e a do pacari, que é a mais linda
que tanto espanta, ou uns simples ramos de assapeixe, que agora em maio era
quadra de se abrirem, o rosado e o branco, por toda beira de estrada. Manuelzão
isso escutou, e no íntimo se agradara. Mas não o deu a entender, não disse
palavra. Sua laia de chefe não o consentia. Ele tinha de ser sério severo nos
exemplos. O velho Camilo podia estar com aquelas ações só por caduquice; os
outros, a boca-do-povo, podiam não achar decência naquilo, mexer maldade,
falario; alguém tinha sobra para dizer que o velho Camilo estivesse solando de
adulação, cada um caça e coça. Também ficava injusto aceitar com
reconhecimentos aquela lembrança, assim diante dos outros, que na labuta do
diário se cansavam, sem tempo nenhum para miudezas, enquanto que o velho Camilo
era apenas uma espécie doméstica de mendigo, recolhido, inválido, que ali viera
ter e fora adotado por bem-fazer, surgido do mundo do Norte:
—
Ele asseste mais é aqui. Às vezes descasca um milhozinho, busca um balde
d’água. Mas tudo na vontade dele. Ninguém manda, não...
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
José
Olympio. Rio de Janeiro, RJ.
1ª edição. 1956.