Há
mais coerência no escritor do que sugeriria o leitor que imita, adere e copia.
Uma velha idéia, a natureza, se esgalha em conseqüências éticas e
pseudo-religiosas, sugerindo uma comunhão de sentimentos que vai além do modelo
aparente do escritor Machado de Assis. O Humanitismo “explica e descreve a
origem e consumação das coisas”, além de prometer a supressão da dor e
assegurar a felicidade. Metafísica e moral: tronco e galhos de uma só árvore.
Combinação de Schopenhauer e do Voltaire de Candide,
descobrindo no otimismo de Pangloss a veia do desespero, escondida na tolice
aparente. Tudo é vontade, isto é, natureza, seja na fase estática, anterior à criação; na expansiva, começo das coisas; na dispersiva, aparecimento do homem, como na contrativa, absorção do homem e das cousas. Nada de reminiscência
ou de zombaria torta a Comte: o mergulho no mar dos fenômenos leva a uma
metafísica, de onde se espraia a moral, com a supressão da dor, tal como no
livro IV de O Mundo como Vontade e
Representação — esta a correção da rebeldia racional contra o estado da
natureza. Natureza, natura naturans,
que a escolástica e especialmente Averróis (leitura de Simão Bacamarte, O Alienista) introduziram na filosofia,
identificada a Deus por Santo Agostinho (o santo que era a mesma alma de Quincas
Borba, o autor do Humanitismo) — ea
natura quae creavit omnes coetera instituique naturas — daí por diante
adotada pelos suspeitos do panteísmo. Ela circulou nas páginas de Giordano
Bruno, Nicolau de Cusa, Eckhart, até atingir Spinoza. “Natureza naturante —
explica o último, para quem o criado é emanação do criador — é o que é em si e
é concebido por si, ou dito de outro modo, os atributos da substância que
expressam uma essência eterna e infinita, ou seja, Deus, enquanto se o
considera como causa livre.”
Raymundo Faoro
Machado
de Assis: A Pirâmide e o Trapézio
Globo.
Rio de Janeiro, RJ. 3ª edição. 1988.