sábado, 5 de janeiro de 2013

MACHADO



Há mais coerência no escritor do que sugeriria o leitor que imita, adere e copia. Uma velha idéia, a natureza, se esgalha em conseqüências éticas e pseudo-religiosas, sugerindo uma comunhão de sentimentos que vai além do modelo aparente do escritor Machado de Assis. O Humanitismo “explica e descreve a origem e consumação das coisas”, além de prometer a supressão da dor e assegurar a felicidade. Metafísica e moral: tronco e galhos de uma só árvore. Combinação de Schopenhauer e do Voltaire de Candide, descobrindo no otimismo de Pangloss a veia do desespero, escondida na tolice aparente. Tudo é vontade, isto é, natureza, seja na fase estática, anterior à criação; na expansiva, começo das coisas; na dispersiva, aparecimento do homem, como na contrativa, absorção do homem e das cousas. Nada de reminiscência ou de zombaria torta a Comte: o mergulho no mar dos fenômenos leva a uma metafísica, de onde se espraia a moral, com a supressão da dor, tal como no livro IV de O Mundo como Vontade e Representação — esta a correção da rebeldia racional contra o estado da natureza. Natureza, natura naturans, que a escolástica e especialmente Averróis (leitura de Simão Bacamarte, O Alienista) introduziram na filosofia, identificada a Deus por Santo Agostinho (o santo que era a mesma alma de Quincas Borba, o autor do Humanitismo) — ea natura quae creavit omnes coetera instituique naturas — daí por diante adotada pelos suspeitos do panteísmo. Ela circulou nas páginas de Giordano Bruno, Nicolau de Cusa, Eckhart, até atingir Spinoza. “Natureza naturante — explica o último, para quem o criado é emanação do criador — é o que é em si e é concebido por si, ou dito de outro modo, os atributos da substância que expressam uma essência eterna e infinita, ou seja, Deus, enquanto se o considera como causa livre.”   

 Raymundo Faoro
Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio
Globo. Rio de Janeiro, RJ. 3ª edição. 1988.