Todavia,
num senão, o situado escolhido não dera ponto. Por tanto, podia merecer nome
outro; o de “Seco Riacho”, que o velho Camilo falou. O velho Camilo tivesse
idéia para esse alar, era duvidoso; e alguém acusara por ele. Mas Manuelzão
sabia, o inventante tinha sido mesmo o Adelço, que censurava, que escarnecia.
Por conta de um erro. E de quem tinha sido o erro? Mas que podia acontecer a
qualquer um mestre de mais sertão, pessoa perita nas solidões e tudo.
Porque,
dantes, se solambendo por uma grota, um
riachinho descia também a encosta, um fluviol, cocegueando de pressas, para ir
cair, bem embaixo, no Córrego das Pedras, que acabava no rio de-Janeiro, quee
mais adiante fazia barra no São Francisco. Dava alegria, a gente ver o regato
botar espuma e oferecer suas claras friagens, e a gente pensar no que era o
valor daquilo. Um riachinho xexe, puro, ensombrado, determinado no fino, com
rogojeio e suazinha algazarra — ah, esse não se economizava: de primeira, a
água, pra se beber. Então, deduziram de fazer a Casa ali, traçando de se
ajustar com a beira dele, num encosto fácil, com piso de lajes, a porta da
cozinha, a bom de tudo que se carecia. Porém, estrito ao cabo de um ano de lá
se estar, e quando menos esperassem, o riachinho cessou.
Foi
no meio duma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um
sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a
pontuda falta da toada, do barulhinho. Acordaram, se falaram. Até as crianças.
Até os cachorros latiram. Aí, todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram
com luz, para espiar o que não havia. Foram pela porta-da-cozinha. Manuelzão
adiante, os cachorros sempre latindo — “Ele perdeu o chio...” Triste duma
certeza: cada vez mais fundo, mais longe nos silêncios, ele tinha ido s’embora,
o riachinho de todos. Chegado na beirada, Manuelzão entrou, ainda molhou os
pés, no fresco lameal. Manuelzão a tocha de cera de carnaúba, o peito batendo
com um estranhado diferente, ele se debruçou e esclareceu. Ainda viu o
derradeiro fiapo d’água escorrer, estilar, cair degrau de altura de palmo a
derradeira gota, o bilbo. E o que a tocha na mão de Manuelzão mais alumiou: que
todos tremiam mágoa nos olhos. Ainda esperaram ali, sem sensatez: por fim se
avistou no céu a estrela-d’alva. O riacho soluço se estancara, sem resto, e
talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana. Era como se um
menino sozinho tivesse morrido.
Dera
de ser também nessa época que um argueiro, um broto de escrúpulos, se semeara
no juízo de Manuelzão? Quem sabe não fosse. Se ele mesmo às vezes pensava de
procurar assim, era mais pela precisão de achar um começo, de separar alguma
data a montante no tempo. De todo não queria parar, não quereria suspeitar em
sua natureza própria um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do corpo.
Resistiu. Temia tudo da morte. Pensou que estivesse com mau-olho. Pensou no
riachinho secado: acontecimento assim tão costumeiro, nesses campos do mundo.
Mas tudo vem de mais longe. E se lembrava. Um dia, em hora de não imaginar,
falara à mãe: — “Aqui junto falta é uma igreja... Ao menos um cruzeiro
alteado...” Dissera isso, mas tão sem rompante, tão de graça, que a mãe mais
tarde nem recordou aquelas palavras, quando ela criou a idéia da capelinha na
chã. Desse jeito, as coisas se emendavam. Depois, Manuelzão, quando era de
estar esmorecido, planejava a capela, a missa; quando em outros melhores
ânimos, projetava a festa. Muitos assuntos ele mesmo não sabia que neles não
queria pensar. Mas aquela manância da grota, de ladeira abaixo suas águas, se
acabara.
João
Guimarães Rosa
Uma
Estória de Amor
(Festa
de Manuelzão)
Corpo
de Baile I.
José
Olympio. Rio de Janeiro.
1ª
edição. 1956.