quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

EMANUEL E FEDERICO




Todavia, num senão, o situado escolhido não dera ponto. Por tanto, podia merecer nome outro; o de “Seco Riacho”, que o velho Camilo falou. O velho Camilo tivesse idéia para esse alar, era duvidoso; e alguém acusara por ele. Mas Manuelzão sabia, o inventante tinha sido mesmo o Adelço, que censurava, que escarnecia. Por conta de um erro. E de quem tinha sido o erro? Mas que podia acontecer a qualquer um mestre de mais sertão, pessoa perita nas solidões e tudo.

Porque, dantes,  se solambendo por uma grota, um riachinho descia também a encosta, um fluviol, cocegueando de pressas, para ir cair, bem embaixo, no Córrego das Pedras, que acabava no rio de-Janeiro, quee mais adiante fazia barra no São Francisco. Dava alegria, a gente ver o regato botar espuma e oferecer suas claras friagens, e a gente pensar no que era o valor daquilo. Um riachinho xexe, puro, ensombrado, determinado no fino, com rogojeio e suazinha algazarra — ah, esse não se economizava: de primeira, a água, pra se beber. Então, deduziram de fazer a Casa ali, traçando de se ajustar com a beira dele, num encosto fácil, com piso de lajes, a porta da cozinha, a bom de tudo que se carecia. Porém, estrito ao cabo de um ano de lá se estar, e quando menos esperassem, o riachinho cessou.

Foi no meio duma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho. Acordaram, se falaram. Até as crianças. Até os cachorros latiram. Aí, todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia. Foram pela porta-da-cozinha. Manuelzão adiante, os cachorros sempre latindo — “Ele perdeu o chio...” Triste duma certeza: cada vez mais fundo, mais longe nos silêncios, ele tinha ido s’embora, o riachinho de todos. Chegado na beirada, Manuelzão entrou, ainda molhou os pés, no fresco lameal. Manuelzão a tocha de cera de carnaúba, o peito batendo com um estranhado diferente, ele se debruçou e esclareceu. Ainda viu o derradeiro fiapo d’água escorrer, estilar, cair degrau de altura de palmo a derradeira gota, o bilbo. E o que a tocha na mão de Manuelzão mais alumiou: que todos tremiam mágoa nos olhos. Ainda esperaram ali, sem sensatez: por fim se avistou no céu a estrela-d’alva. O riacho soluço se estancara, sem resto, e talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana. Era como se um menino sozinho tivesse morrido.

Dera de ser também nessa época que um argueiro, um broto de escrúpulos, se semeara no juízo de Manuelzão? Quem sabe não fosse. Se ele mesmo às vezes pensava de procurar assim, era mais pela precisão de achar um começo, de separar alguma data a montante no tempo. De todo não queria parar, não quereria suspeitar em sua natureza própria um anúncio de desando, o desmancho, no ferro do corpo. Resistiu. Temia tudo da morte. Pensou que estivesse com mau-olho. Pensou no riachinho secado: acontecimento assim tão costumeiro, nesses campos do mundo. Mas tudo vem de mais longe. E se lembrava. Um dia, em hora de não imaginar, falara à mãe: — “Aqui junto falta é uma igreja... Ao menos um cruzeiro alteado...” Dissera isso, mas tão sem rompante, tão de graça, que a mãe mais tarde nem recordou aquelas palavras, quando ela criou a idéia da capelinha na chã. Desse jeito, as coisas se emendavam. Depois, Manuelzão, quando era de estar esmorecido, planejava a capela, a missa; quando em outros melhores ânimos, projetava a festa. Muitos assuntos ele mesmo não sabia que neles não queria pensar. Mas aquela manância da grota, de ladeira abaixo suas águas, se acabara.


João Guimarães Rosa
Uma Estória de Amor
(Festa de Manuelzão)
Corpo de Baile I.
José Olympio. Rio de Janeiro.
1ª edição. 1956.